segunda-feira, 4 de julho de 2016

Reminiscências de Belo Horizonte

Bom dia, queridos leitores. A saudade daquela grande aventura só aumenta dentro de mim. Foi um grande aprendizado passar seis meses junto ao Théâtre du Soleil. Mais incrível foi encontrar pessoas que acreditaram no meu potencial, colocando-se à disposição para investigar comigo na oficina e para ouvir um pouco da minha trajetória. Muito obrigada.

Divido com vocês aqui um pouco do que foram esses dias com jovens artistas de Belo Horizonte. As primeiras fotos são da oficina "O ator em jogo - treinamento e improvisação" realizadas no Centro Cultural São Geraldo. Em seguida, temos fotos da "Residência artística no Théâtre du Soleil: uma partilha de experiências" realizada no Centro Cultural Padre Eustáquio. As fotos são da querida Raquel Carneiro.

Obrigada e até logo!






















terça-feira, 7 de junho de 2016

Oficina do Jean-Jacques Lemêtre na Índia

Bom dia a todos!

O músico do Théâtre du Soleil estará em Pondicherry na Índia ministrando uma oficina para atores, músicos, dançarinos, cantores e aqueles que estiverem interessados em explorar a relação do corpo com a música.

A oficina acontecerá em agosto e será ministrada em inglês. Deixo abaixo a divulgação!




domingo, 17 de abril de 2016

Uma partilha de experiências em Belo Horizonte

Estamos chegando ao final desse projeto que possibilitou que eu experienciasse seis meses de muito aprendizado com o Théâtre du Soleil. Tenho muito a agradecer a todos que contribuíram para que esse sonho se concretizasse. Fico imensamente feliz de poder compartilhar toda essa minha experiência em Belo Horizonte, cidade querida que nunca teve a oportunidade de receber o Soleil... pelo menos não ainda.

Agora, convido todos vocês a participarem desse último evento onde vou apresentar mais sobre a minha experiência e o Théâtre du Soleil. Vamos lá?


Residência artística no Théâtre du Soleil: uma partilha de experiências
A partilha de experiências consiste em um espaço de diálogo entre artista residente e público onde a atriz Juliana Birchal compartilhará a sua vivência com o Théâtre du Soleil - um dos mais reconhecidos no cenário teatral internacional. O público também terá a oportunidade de conhecer uma pouco mais sobre o trabalho dessa trupe, os percalços, as conquistas e as dificuldades de continuar resistindo como trupe de teatro na atualidade.

Data: 18 de abril
Horário: das 19h00 às 20h00
Local: Centro Cultural Padre Eustáquio (Rua Jacutinga, 821 - Bairro Padre Eustáquio).
Entrada gratuita.



quarta-feira, 6 de abril de 2016

Oficina no Centro Cultural São Geraldo

Bom dia a todos e todas!

Na semana que vem iniciarei os eventos aqui em Belo Horizonte com a oficina O ator em jogo - treinamento e improvisação no Centro Cultural São Geraldo.  A oficina traz alguns aprendizados da residência que realizei no Théâtre du Soleil e é totalmente gratuita. As inscrições vão até essa sexta!


Oficina: O ator em jogo – treinamento e improvisação 

A oficina propõe investigar as ferramentas básicas do trabalho do ator como a ação, a imaginação, a escuta, a musicalidade, o “estar no presente” e o jogo. Inspirada pelo modo de trabalho do Théâtre du Soleil, a oficina reúne exercícios que vão do treinamento individual à improvisação coletiva.

Juliana Birchal é atriz formada pelo CEFAR (2008-2010) e licenciada em teatro pela UFMG (2008-2013). Desde 2013 explora a linguagem das máscaras teatrais e da improvisação como ferramentas de trabalho para o ator. Entre os anos de 2014 e 2016, Juliana realizou uma residência artística de seis meses na trupe francesa Théâtre du Soleil com os recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.

Público-alvo: estudantes e profissionais de teatro a partir de 15 anos.
Número de vagas: 20 vagas
Data: 11 a 15 de abril
Horário: das 13h30 às 17h30
Local: Centro Cultural São Geraldo (Av. Silva Alvarenga, 548 - Bairro São Geraldo).
Inscrições: enviar currículo breve e carta de interesse para jlbirchal@gmail.com até o dia 08/04.



segunda-feira, 28 de março de 2016

Programação em Belo Horizonte!

No mês de abril, estarei em Belo Horizonte realizando três eventos para compartilhar as experiências vividas com o Théâtre du Soleil ao longo dos seis meses de residência.

O primeiro evento se trata da oficina O ator em jogo - treinamento e improvisação direcionada para estudantes e profissionais de teatro. Nela, será investigadas as ferramentas básicas do trabalho do ator como a ação, a imaginação, a escuta, a musicalidade, o "estar no presente" e o jogo, do treinamento individual à improvisação coletiva.

O segundo evento, ligado ao primeiro, consiste na Mostra da oficina aberta ao público no qual o público será convidado a testemunhar um pouco do trabalho prático realizado com os participantes da oficina.

O terceiro evento intitula-se Residência no Théâtre du Soleil: uma partilha de experiências, momento em que eu apresentarei a minha experiência com a trupe, os aprendizados e questionamentos sobre o fazer teatral na contemporaneidade. O intuito é promover um espaço de diálogo e compartilhamento com o público.

Todos os eventos são gratuitos!

Abaixo segue a programação!



terça-feira, 15 de março de 2016

Despedidas

Essa foi a minha última semana no Théâtre du Soleil. A minha grande aventura que se iniciou em outubro de 2014 agora encontra o seu fim. Foram seis meses de muito aprendizado. Primeiro passei três meses trabalhando na temporada de Macbeth onde pude observar a rotina de apresentações da trupe francesa, passear pelos camarins e ajudar na mise en place; um ano depois fui encontrar o Soleil na Índia, primeiro como participante da École Nomade e depois como testemunha dos primeiros passos da nova criação; por fim, fui reencontrar o Théâtre du Soleil na França ainda em processo de criação, passando por altos e baixos. Foi realmente uma grande aventura e saio dela diferente de quando tudo começou.

Essa última semana foi repleta de despedidas como vocês devem imaginar. Mas, não do jeito que vocês imaginam. Enquanto eu já estava em ritmo de partida, o Soleil estava a pleno vapor.

O início da semana foi marcada pela chegada do Odin Teatret que vai realizar uma série de atividades na Cartoucherie no mês de março. Os atores do Soleil ficaram excitados com os novos companheiros de almoço que, acredito eu, talvez estivessem igualmente empolgados. Eugênio Barba e Ariane Mnouchkine, além de grandes encenadores também são grandes amigos. Ambos resistem há 52 anos com seus respectivos grupos e fazeres teatrais.

Apesar de muito amigável, a visita dos parceiros do norte causaram muitas reviravoltas na rotina dos "franceses". Algumas manhãs de treino foram presenciadas por membros do Odin, como o próprio Eugênio Barba, o que causou certo desconforto entre os atores. Um dos galpões do Soleil foi adaptado para ser ocupado pelo grupo dinamarquês, fazendo com que ambas as trupes tivessem que se adaptar para co-habitarem o mesmo espaço.

Aqui é preciso uma pequena explicação. O Théâtre du Soleil possui dois grandes espaços: os galpões principais compostos pelo bar, cozinha, ateliê dos técnicos, palco e camarins; e um outro galpão onde fica a sala de costura, os figurinos e a sala de ensaios. Até esse momento, todos os ensaios aconteciam nessa sala de ensaios. Menor que o palco, a sala de ensaios possui um pequeno espaço de camarins e uma pequena arquibancada que comporta basicamente Ariane Mnouchkine e atores. Ao lado da sala de ensaios fica a sala de costura onde as figurinistas trabalham e onde os atores garimpam as vestimentas de seus personagens.

Pois bem, justamente nesta semana, a trupe fez a transição da sala de ensaios para o palco, apesar de não ser ainda uma transição definitiva. Mesmo assim, a passagem de um galpão a outro é um tanto quanto simbólica. Nesse palco, Ariane Mnouchkine apresentou sua primeira maquete cenográfica. Os técnicos e os iluminadores puderam colocar em práticas algumas ideias já previstas para a cena. Os atores puderam vislumbrar mais concretamente o espaço ficcional.

Foi nessa semana também que finalizou o período de estágio com o petit bateau. O petit bateau era um pequeno grupo de atores-aprendizes que estavam em teste para participar do novo espetáculo do Théâtre du Soleil. Carinhosamente apelidado de "pequeno barco" - uma alusão à imagem de um navio frequentemente utilizada por Mnouchkine para descrever o Soleil - esses atores participavam das improvisações, propunham visões e "concoctavam" com a ajuda de atores experientes da trupe. Ao final da semana, Mnouchkine decidiu que infelizmente não era o momento do petit bateau compôr o grand bateau.

Foi no meio de todos esses eventos que eu vivi um pouco secretamente a minha despedida daqueles grandes galpões, dos almoços cheios e barulhentos, dos banhos de sol depois do almoço, dos camarins, dos ateliês, do barulho de serralheria, da imensidão de cores e tecidos, do silêncio da Cartoucherie, das noites intermináveis dentro da sala de ensaio... São tantas lembranças que parece que eu vivi uma vida inteira lá dentro.

Agradeço imensamente ao Soleil que me abriu as portas sem mesmo me conhecer direito; que me deixou entrever momentos íntimos, momentos de dor e momentos de alegria; que me deixou conhecer as alegrias e os desgostos de se fazer teatro em grupo... Desejo que vocês continuem a resistir mesmo com todas as mudanças de vento.


Muito obrigada.... e até breve.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Ponto de retorno

"Aos observadores: eu não sei vocês se dão conta da sorte que vocês tem de estarem aqui, de ver uma companhia como o Soleil passar por dificuldades... Fazer teatro é difícil!"  Essas foram as palavras que Ariane Mnouchkine dirigiu a um pequeno grupo de quatro observadores.

Assim como qualquer companhia de teatro comprometida com o fazer artístico, o Théâtre du Soleil também encontra os seus momentos de dificuldade. Normalmente, eles se dão na adolescência (como é normal de se dizer por lá), mas nesse espetáculo foi durante a infância ainda que as dificuldades apareceram. Dias em que nada parece funcionar. As visões são escassas, as improvisações parecem que não tem nada a acrescentar ao tema principal, os atores não conseguem jogar e Ariane Mnouchkine não consegue ajudá-los.

Nesses dias, Madame Mnouchkine fica muito tempo em silêncio. Porque não funciona? Onde está o problema? O que dizer para os atores para ajudá-los em cena? Essas são as perguntas que eu imagino que devem passar pela sua cabeça. Um dia de dificuldades às vezes resulta em uma manhã (ou num dia inteiro) de brainstorming - método em que um grupo de pessoas se reúnem para produzir ideias a fim de estimular a criatividade e impulsionar o projeto adiante. Enquanto isso, o restante da trupe continua o seu trabalho de treinamento.

Em momentos de dificuldade, tudo é repensado. Será que o tema é instigante o suficiente? Será que os atores receberam todas as informações necessárias para a criação? Ariane Mnouchkine fala sobre o "ponto de retorno" utilizado pelos pilotos de avião. O "ponto de retorno" seria o ponto limite em que o piloto ainda pode voltar atrás no caso de alguma emergência. Depois desse ponto, não há nada que possa ser feito, apenas continuar em frente. Eu não sei dizer se o Théâtre du Soleil chegou nesse ponto. Nem eles sabem.  Mas, até o presente momento, todos acreditam que esse é um projeto potente o suficiente para continuar em frente.

As reuniões ajudam a precisar alguns aspectos dramatúrgicos ou estilísticos. Os atores reunidos no brainstorming produzem improvisações a partir das discussões geradas e estas ajudam o restante da trupe a compreender com mais clareza o que Mnouchkine procura.

É mais fácil reproduzir algo que já se conhece do que se jogar no desconhecido. O sucesso e o reconhecimento do Soleil não fazem o espírito criativo se calar. Aos 77 anos recém completos, Ariane Mnouchkine é inquieta. "Se estivéssemos criando Le dernier caravensérail essa improvisação seria perfeita... mas esse é outro espetáculo". Uma nova criação movida por uma trupe que continua caminhando em frente e não se vangloriando das conquistas passadas. O que é importante de se dizer em 2016? O que nos move hoje?

O risco de experimentar algo novo. O risco do erro, do fracasso. O risco de tocar assuntos delicados, mas sempre com uma clareza política incrível. "Somos e não somos Charlie Hebdo ao mesmo tempo". Ariane toma o risco de fazer algo novo, diferente do que ela já fez.

É muito bonito ver uma trupe se reinventar depois de 50 anos de vida. E nesse assunto, Dostoievski disse muito bem: "errar em nosso caminho é melhor que acertar em caminho alheio".*

*Citação do livro "Crime e Castigo".

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Sobre o tempo

Estava dentro do Théâtre du Soleil pensando sobre o que escrever essa semana. Pensava sobre o blogue e sobre como uma semana passa rápido por aqui. "Logo, logo a minha residência chega ao fim e estarei de volta ao Brasil. Terei passado dois meses assistindo aos ensaios..." Foi quando me dei conta. Estou há quase dois meses assistindo o processo de criação e o Soleil ainda está no início de tudo. Com dois meses, muitos espetáculos no Brasil já estão bem encaminhados. E aqui, o espetáculo ainda é um bebê.

O trabalho de criação tem um ritmo muito diferente do dia a dia. O tempo tem outra espessura. Esse ingrediente - tempo - é uma das principais diferenças entre o teatro de pesquisa e o teatro comercial. Enquanto muitas produções tomam entre três e quatro meses, o Théâtre du Soleil leva em torno de um ano para finalizar um espetáculo. E trabalha-se muito durante esse tempo. Como já citei anteriormente, a trupe trabalha em média 10 horas por dia, 05 dias na semana (sendo que esse tempo tende a crescer com o passar dos meses). Fora da rotina de trabalho, temos praticamente tempo apenas para comer e dormir. Mesmo nos finais de semana, vários atores aproveitam para pesquisar, preparar ou confeccionar algum material necessário para a sua improvisação.

Durante a semana, metade da tarde é dedicada à concoctage, ou seja, elaborar uma improvisação a partir de uma visão, encontrar os elementos concretos com que se possa jogar, elaborar como torná-la viável tecnicamente. Depois precisam procurar referências, construir algum aparato cênico, encontrar o figurino apropriado... Só depois a improvisação está pronta para entrar em cena. Algumas delas demoram dias para estar pronta. O restante da tarde muitas vezes não é suficiente para mostrar todas as improvisações preparadas e assim trabalha-se noite adentro.

Quando eu estava na Índia, perguntei a um dos atores da trupe por que ele não participava de nenhuma improvisação. "Tenho uma visão, mas não sei ainda como desenvolvê-la" e me contou rapidamente do que se tratava. Era uma situação totalmente dentro do tema proposto e eu me perguntava "por que você não a faz então?". E ele me respondeu "preciso preparar melhor...". Quase um mês depois vejo a improvisação dele se concretizar no palco. Durante esse tempo, via-o conversando com diversos atores da trupe, olhando algumas fotos de referência...

A questão é que a visão existia - uma imagem muito clara e potente. Mas, era preciso que essa visão se tornasse uma improvisação. E para isso, é preciso encontrar a matéria necessária para o jogo cênico: onde tudo se passa, em que momento do dia e da estória dada, quem são as personagens envolvidas, por que elas estão envolvidas; quais são as ações realizadas, em qual estado físico estão as personagens, qual é a sua música interna, qual é a motivação para o desencadeamento dos eventos; como serão feitas as entradas, como realizar tecnicamente, para onde essa improvisação pode caminhar. Depois de que tudo isso, ainda é preciso ensaiar alguma movimentação mais complexa, providenciar a ajuda de outros atores que poderão manipular algum elemento da cena - do ator à fumaça, conversar com Jean-Jacques Lemêtre (o músico) e suas assistentes, responsáveis por um banco de sons gigantesco. Muitos atores escrevem páginas e mais páginas de texto que podem dizer em cena. E pode ser que tudo mude durante a improvisação. E pode ser que a improvisação não funcione.

Entre uma improvisação e outra, Ariane Mnouchkine observa o que a cena pede, ou seja, se é necessário acrescentar ou retirar algo do espaço cênico, se precisa haver alguma modificação na iluminação. Modifica o espaço em um dia para no dia seguinte mudar de ideia. Assim como as improvisações, pode ser que a mudança funcione ou não.

Após quase dois meses de ensaio, a dramaturgia ainda é muito embrionária. No caso desse espetáculo em que o ponto de partida vem de um tema e não de um texto previamente escrito, os atores são os primeiros autores. A estória vai se construindo pouco a pouco através das improvisações. Tudo é descoberto em cena.

Uma frase frequentemente dita por ela é que o único luxo que o Théâtre du Soleil possui é o tempo. Eu não concordo. O Théâtre du Soleil tem à disposição uma estrutura material e artística invejável. Mas, certamente, o tempo é um dos grandes luxos da trupe. Sustentada em parte pelo poder público francês, o Soleil defende com unhas e dentes que é preciso de tempo para realizar um espetáculo teatral de qualidade. E não é o público que vai contestar isso. O último espetáculo da trupe - Macbeth - ficou cerca de um ano em cartaz na Cartoucherie e contava com plateia cheia em todas as seis apresentações semanais.

Num mundo globalizado regido pela otimização do tempo, esquecemos por vezes que o teatro é artesanal. O artesão precisa de tempo para deixar o couro amaciar.

Tempo, esse mano velho.

...

Pra quem não entendeu a referência, aqui vai a música do Pato Fu "Sobre o tempo".
https://www.youtube.com/watch?v=KaGDbuXqP0s 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Mais próximos do que supomos

Um dia desses, vi um vídeo na internet que me chamou muita a atenção. Nele, o interlocutor discutia a relação entre cultura e desenvolvimento social, político e econômico. Defendia, em suma, que o nosso comportamento individual - em parte determinado pela cultura - afeta diretamente o desenvolvimento de todo um país. Provavelmente você deve estar se perguntando porque eu estou falando sobre isso aqui e não sobre teatro, não é? Já, já, chego lá e, quando chegar, espero que você entenda o que eu quero dizer com tudo isso.

Bem, o fato é que o vídeo me deixou tão incomodada que eu comecei a observar o comportamento das pessoas em meu entorno. Como vocês podem imaginar, o meu entorno atualmente é o Théâtre du Soleil. Após o pequeno período de recesso, a trupe retornou para a França e retomou os ensaios. Na minha cabeça, acreditava o tempo todo que a rotina do Soleil em casa seria completamente diferente daquela estabelecida na Índia. Mas, eu estava errada. O que eu vi foi exatamente a tentativa de preservar o máximo possível a mesma rotina de trabalho: os horários, o treinamento, as improvisações, a configuração dos espaços... Era como se ainda estivéssemos na Índia.

Na verdade, era como se estivéssemos na França. Porque, era o Soleil que tentava reproduzir a sua rotina de trabalho na Índia e não o inverso. Em um espaço menor, como o era na Índia, é mais fácil de perceber como toda a equipe está o tempo todo trabalhando junta.

Passa-se o dia inteiro juntos. Treina-se juntos. Come-se juntos. Cria-se juntos. Falamos de uma companhia de teatro com uma estrutura bastante complexa que praticamente vive junta. Da encenadora ao estagiário. E é assim desde muito tempo.

Não é fácil viver em coletivo. Após quase seis meses vivendo com a trupe, posso dizer isso com segurança. Muitas vezes para que o coletivo consiga prosseguir, é preciso fazer concessões. Por exemplo, é preciso saber dividir o espaço, dividir a comida, conviver com pessoas agradáveis e desagradáveis. Regras implícitas ou explícitas que devem ser seguidas à risca, sem exceções: não chegar atrasado, não usar os sapatos da rua no espaço de trabalho, não entrar/sair da sala de ensaio durante uma improvisação.

Essa noção de coletividade é extremamente forte no Théâtre du Soleil. É fácil entender o por quê se pensamos que se trata de quase 100 pessoas cohabitando o mesmo espaço todos os dias. Afinal de contas, ter banheiros limpos é essencial. Ter uma sala de ensaio limpa também. Para a trupe, é importante que todos ali passem pelo trabalho na cozinha, na bilheteria, na recepção do público, na administração, na técnica... Por vezes, vemos até mesmo Madame Mnouchkine botando a mão na massa. Em algumas ocasiões festivas do Soleil, Ariane Mnouchkine ajuda a cozinhar e a servir os convidados. Nos dias de apresentação, é ela que recebe o público na porta de entrada e ajuda a recolher os bilhetes. Mas, a coletividade é considerada fundamental também para a criação. Afinal, no teatro precisamos do outro para criar.

No caso do Soleil, até mesmo a criação de um personagem se dá de forma coletiva. Às vezes um ator propõe um personagem ou uma situação interessante para o espetáculo, mas não consegue desenvolvê-lo. Então, um outro ator irá substituí-lo na tentativa de continuar o trabalho que o primeiro iniciou. Normalmente se trata de um ator-locomotiva, ou seja, uma espécie de ator curinga que possui a responsabilidade de guiar os outros atores na criação, seja porque ele é um ator mais experiente e, portanto, mais familiarizado com o modo de criação do Soleil, seja porque ele é um grande improvisador. Mesmo assim, isso não significa que o jogo está ganho. Às vezes ele é bem sucedido e às vezes não. Então, este será substituído por outro ator ainda, locomotiva ou não, que tiver alguma visão relacionado ao personagem/situação em questão. E é assim que o trabalho vai se desenvolvendo.

Fora de cena a relação é a mesma. Os atores precisam das figurinistas para ajudar a montar o personagem, preparar um tipo de vestimenta.... da mesma forma que o arquiteto precisa do engenheiro para subir um prédio. E as figurinistas precisam do desenvolvimento das improvisações para elaborar o figurino do espetáculo. Em um mundo cada vez mais globalizado, isso é ainda mais real, não é mesmo? Todos precisam de todos. Verdadeiramente. Os estagiários são requisitados para auxiliar aos atores a preparar as improvisações. Assim como os engenheiros não conseguiriam subir prédio nenhum sem o pedreiro. Não estamos sozinhos no mundo. E o que seria um grupo de teatro que uma pequena amostra desse nosso mundo?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

"Se vamos falar sobre monstruosidades, temos de pensar como monstros"

Recesso. Após várias discussões, a trupe decidiu que era necessário conhecer mais a Índia por dentro. Agora, cada um tem explorado esse país milenar da sua própria maneira. Durante esse breve intervalo, se assim podemos chamá-lo, eu aproveito para estar em casa, recarregando as baterias para a reta final.

Nesse mês de janeiro, o Soleil encontrou um pequeno embrião do que será o seu próximo espetáculo. Não afirmo que vislumbro com clareza o produto final - afinal é tanta coisa que acontece dentro de uma criação, não é mesmo? -, mas acredito que toda a equipe volta para a França embebida de algo de essencial.

Vocês devem estar se questionando o que tudo isso tem a ver com o título desse texto. Gostaria de voltar um pouco no tempo e retomar aquela última semana de ensaios da qual ainda não consegui falar sobre. Para mim, ela poderia começar com a seguinte pergunta.

Para quê teatro?

Às vezes é preciso relembrar do por quê de fazermos teatro. Para além do prazer estético e pessoal. Para além da vontade de se colocar em cena. Para além da necessidade de sobrevivência da alma. E foi essa pergunta que foi levantada na sala de ensaio do Théâtre du Soleil por nem mais e nem menos que Ariane Mnouchkine.

Explico.

Em um dos dias de ensaio, como era de costume por aqueles dias, os atores estavam focados  em descobrir novos personagens, novas situações, algo que funcionasse, que desse certo em cena. Cada improvisação era seguida de um comentário da encenadora: o que funcionava em cena, o que era interessante e o que não era. Mas, em um determinado momento, Mnouchkine ficou em silêncio. Já era final de tarde.  Olhava para o chão. Pés um pouco inquietos. Dedos que procuravam alguma coisa invisível. Os atores a observavam ansiosos. Algumas vezes, isso acontecia nos ensaios, mas mesmo assim todos nós sempre aguardávamos com ansiedade para ouvir o que ela tinha a dizer. Após um pequeno período de tempo, Mnouchkine respirou fundo. E então disse. Nesse dia algumas improvisações já haviam sido feitas. Diferente dos dias anteriores marcados por uma tendência cômica, naquele dia as improvisações tinham sido em sua maioria dramáticas.

Ariane Mnouchkine começou brincando: "está parecendo que vocês estão dizendo já brincamos o suficiente, fizemos umas cenas engraçadas. Agora vamos trabalhar de verdade." Algo desse gênero. Depois, ela respirou e disse "precisamos nos responsabilizar pelo o que mostramos em cena, ir mais a fundo".  Foi nessa mesma ocasião que ela disse a frase do título. Gostaria de conseguir lembrar com exatidão todas as palavras ditas por ela.

A fala dela ecoou em mim como as ondas produzidas por uma pedra que é jogada no lago. Uma série de questões começaram a povoar a minha cabeça. Até que ponto assumimos a responsabilidade pelo o que colocamos em cena? Por um personagem que damos vida? Temos de ser responsáveis pelos discursos que abrimos ao mundo. Verdadeiramente. Quantos Macbeths existem por aí? Quantos Hamlets e Ofélias? Quantas Medeias? Falamos de um mundo real através de um drama ficcional. Precisamos sim ir mais a fundo. No que realmente tem de urgente e de perigoso. Falar de algo e encarar todas as consequências.

O fazer teatral está completamente ligado a isso.

Mnouchkine parou e se lembrou de uma das improvisações apresentada. Apesar de ter sido mal executada, o tema da improvisação era extremamente inquietante. Se tratava de um tema atual e pesado. Uma daquelas cenas que assistimos no noticiário e temos vontade de chorar. Mas, até aquele momento, era apenas uma improvisação não muito bem sucedida que propunha um tema relevante. Como observadora, a improvisação não tinha me afetado muito.

Era justamente essa improvisação que incomodava Ariane Mnouchkine. Ela tentava entender, porque que a improvisação havia fracassado, afinal se tratava de uma visão forte realizada por atores muito competentes... E então teve uma visão.

Reuniu um grupo de atores, Jean-Jacques Lemêtre e suas assistentes. Conversavam em particular  preparando uma surpresa para o restante da trupe. Depois, começaram a correr de um lado para o outro, preparando a nova tentativa. Uma espera inquietante de 30 minutos até que tudo estivesse preparado. Os atores disseram "nós estamos prontos" e Ariane respondeu "nós também".

A improvisação teve início. Havia uma grande transformação no espaço que me fazia ter a sensação que eu não estava mais dentro daquele teatro em Pondicherry. O ar parecia mais pesado. Eu não entendia imediatamente quem eram cada um dos personagens ou o que estava acontecendo, mas percebia que todos estavam carregados internamente e que eles, os personagens, sabiam exatamente o que eles estavam fazendo. Estavam no presente, realizando ações concretas. Havia uma certa urgência que fazia a estória prosseguir e que prendia o meu olhar. Sem que a improvisação fosse interrompida, Ariane Mnouchkine ia direcionando os atores como uma chefe de orquestra. Pouco a pouco, o público entendia que a cena se encaminhava para o evento principal. Eu quase prendia a minha respiração. Já sabia o que ia acontecer, mas estava envolvida completamente. Não era apenas a minha racionalidade que me dizia da gravidade do tema. Era o meu corpo inteiro, os meus pulmões, o meu coração, a minha pele. O ápice chegou e depois, o desfecho. A sala estava muda.

Madame Mnouchkine tinha conseguido potencializar a força daquela primeira visão. Sendo uma  encenadora, conseguiu escolher uma outra forma de apresentar aquele tema que o tornava mais perigoso para quem assistia. Para os atores, deu ações concretas, um estado de urgência. Antes, a improvisação apenas ilustrava a situação sugerida. Era potente, mas faltava ação. Sem perceber, os atores haviam pintado uma imagem que não tinha para onde ir. Não havia transformação do espaço. Vários atores eram meros figurantes. Não colaboravam em adicionar mais uma camada de sentido no quadro geral. Eram apenas pessoas que preenchiam o espaço. Mesmo sendo ilustrativo, não compreendíamos o que, onde ou quando. Como observadora, aquilo não me afetava. Poderia sair dali e tomar um café como se nada tivesse acontecido.

Já a segunda tentativa foi completamente diferente. Havia uma transformação do espaço. Uma ação era encadeada pela outra. Havia ritmo, uma música interna. Cada personagem, por menor que fosse, era essencial, pois ajudava a construir o sentido da cena. O público mergulhava no universo. Tínhamos a impressão de vermos um recorte de uma vida que transbordava aquele momento e aquele espaço. Os atores estavam vivos. Se colocavam em risco. E nós, público, não conseguíamos fingir que nada estava acontecendo. Sentíamos o peso, a dor, a profundidade.

Ariane Mnouchkine mostrava no palco o que significava ser responsável e ir a fundo. Lembro agora de uma frase que era frequentemente repetida por ela durante a École Nomade: "fazer teatro é mais perigoso que isso. Não é tão fácil assim. É mais urgente, exige mais de você".

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Em busca do Oriente

Um dos apectos do trabalho do Théâtre du Soleil que mais chama a atenção de pesquisadores e estudiosos é a forma como a trupe francesa se apropria de tradições teatrais do Oriente. Mas, eles não são os únicos. Encenadores como Peter Brook e Eugenio Barba também são famosos por esse tipo de apropriação. É claro que o processo e o resultado artístico de cada um vão ser completamente diversos.

No caso do Théâtre du Soleil, esse interesse pelo Oriente já é muito antigo e se revela de diferentes formas no trabalho da trupe. O espetáculo L'Indiade ou l'Inde de leurs rêves (1987) utiliza a Índia como universo ficcional. Le Tartuffe transportou Molière para o Oriente Médio e Tambours sur la digue colocou em cena o teatro de marionetes e os tambores coreanos. Mas, a influência do Oriente na vida da trupe é mais profunda que isso. Os atores menos experientes aprendem com os mais experientes através da observação e da imitação, assim como os mestres de Terrakoothu transmitem há milênios a sua arte. A expressividade dos olhos e as linhas do corpo lembram uma dançarina de Bharatanatyam ou um ator de Katakhali - disciplinas inclusive estudadas anteriormente por alguns atores do Soleil. As cores dos cenários e dos figurinos - com seus vermelhos e amarelos - são do mesmo tom encontrados nas ruas e templos indianos. É curioso perceber como essa influência - sobretudo estética - fica evidente conhecendo de perto a Índia.

Sabendo que a estada na Índia é curta, a trupe tenta absorver o máximo que pode no menor tempo possível. Tomam todo o período da manhã para praticarem o que vieram buscar na Índia (alguns começam às seis e meia da manhã). À tarde, tentam descobrir como que esse conhecimento verterá na criação: seria como tema? Como forma? Vários experimentos são feitos. Improvisações de naturezas diversas. Acima de tudo exigência. Tudo pode ser tentado, mas não qualquer coisa.

Aos poucos, entre dias bons e dias ruins, a trupe vai descobrindo o que funciona. Ou melhor, o que não funciona. Um grupo de atores, por exemplo, persistiram em uma mesma improvisação por três dias. Fizeram ao menos três versões da mesma cena - cada uma mais ousada que a outra. Os mais desatentos diriam que foi tempo perdido. Mas, encontrar o caminho também implica em descobrir o não-caminho.

E assim, pouco a pouco a Índia vai se adentrando na carne da trupe.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Visões

O momento da criação de um espetáculo é o momento mais especial e caótico que pode ser vivido por uma trupe de teatro. É o momento da efervescência, mas também do vazio. Das descobertas e dos questionamentos sem fim... Quem já vivenciou algum processo de criação sabe exatamente do que eu estou falando. E quando essa criação se dá em grupo, ela é muito mais intensa.

Nesse sentido, o Théâtre du Soleil não é uma exceção. Ele também tem as suas crises, as suas alegrias. Dias bons e dias ruins.

Sinto-me privilegiada em poder testemunhar esse momento tão peculiar da vida do Théâtre du Soleil e de poder escrever sobre ele aqui para vocês. No entanto, tal qual uma hóspede que respeita as regras da casa onde visita, eu não poderei revelar para vocês tudo sobre a criação. Mas, prometo que tentarei da melhor forma possível compartilhar aquilo que estiver em meu poder.

...

Durante o período de Ano Novo, vi aos poucos a pequena cidade de Pondicherry ser invadida por membros do Théâtre du Soleil. A cada nova esquina, um técnico, um membro da produção, um e outro ator... Era engraçado perceber que dentro da Índia crescia uma França. Até o cozinheiro estava por aqui! E por que? Ninguém sabia de fato qual seria a sua função na nova produção. Até o primeiro dia de ensaio, apenas Ariane Mnouchkine e Jean-Jacques Lemêtre sabiam exatamente qual seria o tema da criação. Um grande mistério para eles e para mim que não sabia se poderia realmente ou não assistir aos ensaios.

E no dia 04 de janeiro, o Théâtre du Soleil iniciou oficialmente os seus ensaios. Cerca de 100 pessoas se espremendo e se adaptando a essa nova casa na Índia que é a metade do espaço que normalmente se dispõe na Cartoucherie. Todos estão presentes desde o primeiro dia: músicos, figurinistas, atores, técnicos, produtores, iluminadores, cenógrafos, dramaturga... Desde o primeiro dia, todos trabalham juntos na criação.

O trabalho começa às oito e meia da manhã e só vai terminar às seis ou sete horas da noite. Durante o período da manhã, a trupe se dedica a pesquisar e a aprender a fonte de pesquisa que vieram buscar na Índia. O período da tarde é reservado para a criação propriamente dita.

É engraçado observar como que a maneira de trabalhar do Théâtre du Soleil não se difere muito do que foi feito na École Nomade. Primeiramente, os atores se reúnem para concocter, ou seja, para combinar improvisações. Às vezes, isso acontece em roda em que os atores compartilham visões e formam grupos de trabalho.

Aqui vale um parênteses. O termo "visões" é muito utilizado no Théâtre du Soleil. Uma visão significa uma imagem concreta de uma situação ou de um personagem. Poderíamos talvez dizer que seria uma ideia, termo que faz tremer Ariane Mnouchkine. Por que? Porque ideia faz referência à alguma coisa intelectual e que não necessariamente implica em uma ação concreta. Já uma visão não necessariamente passa por uma elaboração intelectual. A palavra visão já imputa uma carga mais emocional ou intuitiva, algo que se passa mais pelo corpo do que pelo intelecto. A visão é algo de tão forte que já traz uma carga emocional e uma concretude, seja para um personagem, seja para uma situação.

A partir dessa visão, os atores de reúnem para concocter, ou seja, para desenvolver uma situação de jogo mais clara. Onde estamos? Quem são os personagens? Em que estados se encontram? Qual ação realizam? Por que realizam essas ações? Após terem entrado em acordo sobre esses elementos, vão preparar questões de ordem prática. Passam por Marie-Hélène, a figurinista, que ajuda a construir a pele dos personagens. Passam por Jean-Jaques Lemêtre, o músico, e compartilham a visão para que ele já elabore algum material sonoro para a improvisação. Passam pelos técnicos se precisam de construir algum elemento de cena.

É nessa parte da tarde que a trupe - atores, músicos, figurinistas, iluminadores, etc - vão tentar transbordar para a criação aquilo que têm pesquisado no período da manhã. Às vezes, Hélène Cixous, a dramaturga, traz alguma proposta de texto que será experimentada pelos atores. E os atores vão se utilizar de tudo que for preciso para concretizar as suas visões.

Então, todos se assentam na arquibancada para dar início ao trabalho de criação. Ariane Mnouchkine dá orientações para os atores "esse é o momento que vocês podem tudo. Não tenham medo de serem ridículos ou de errarem. Esse é o momento para sermos o mais criativo possível. Coragem!".

E o primeiro corajoso grupo sobe ao palco.

Na maior parte das vezes, a improvisação não chega ao fim. Ou sofre mudanças em seu curso. Alguma coisa que foi planejada não acontece em cena ou Ariane Mnouchkine direciona a improvisação para outro lugar. Muitas vezes, a improvisação não é um sucesso. Falta concretude. Falta ação. Falta estado. A visão não é forte suficiente. Mesmo quando os atores são muito experientes. Mesmo quando os atores preparam bem a visão. 

Como cães cegos, os atores farejam, tentam, experimentam, jogam-se no desconhecido. Ariane Mnouchkine com sua larga experiência e habilidade tenta guiá-los sem saber para onde estão caminhando. Afinal, seria a obra apresentada à ela através dos atores ou vice-versa? Durante as improvisações, mais perguntas do que respostas. Muitos questionamentos, reflexões, dúvidas.

Cada improvisação abre uma porta completamente diferente. Cada porta é um universo de possibilidades. E isso é assustador. Por onde seguir? Com a sabedoria de uma pessoa que faz teatro há 50 anos, Ariane Mnohckine acalma os atores: "não é hora de fazer escolhas. Esse momento vai chegar, mas estamos somente na primeira semana, não é mesmo?" A busca se dá no palco, em cena, no corpo.

Após as improvisações do dia, Ariane Mnouchkine troca algumas palavras com a equipe. "Alguém tem algo de encorajador para dizer?". E muitas vezes, algum ator compartilha alguma reflexão, alguma frase, algum acalento. Um dia de trabalho com seus bons e maus momentos. Os primeiros dias de trabalho. 

E assim cada um toma o seu rumo. Alguns conversam baixinho enquanto arrumam as suas coisas. Compartilham com os colegas alguma nova visão ou como retrabalhar determinada improvisação em um momento futuro. Do lado de fora, outros atores fumam um cigarro pensativos. Vemos em suas retinas as improvisações do dia, as questões, as dúvidas.

E pouco a pouco o teatro vai se esvaziando.

domingo, 3 de janeiro de 2016

O teatro de Mnouchkine e eu

Após 12 dias de trabalho, a École Nômade se encerra na Índia. O projeto que durou mais ou menos 6 meses em três continentes diferentes agora termina. Pelo menos, por agora. Amanhã, o Théâtre du Soleil começa uma nova criação. Mas, se vocês me permitirem, gostaria de frear um pouco o tempo e usar esse espaço para compartilhar e refletir o que foi a École Nomade.

A primeira coisa que posso dizer é que foi uma experiência muito intensa para todos ali presentes. Durante três semanas - trabalhamos do dia 14 ao dia 30 de dezembro folgando apenas no Natal e nos finais de semana -, nosso cotidiano se resumia em experimentar e observar o teatro que o Soleil acredita. Acordávamos cedo para chegarmos pontualmente na oficina e dormíamos cedo para termos energia para o dia seguinte. A maioria dos participantes dormiu em um mesmo hotel gratuito oferecido pela produção local. Portanto, mesmo quando não estávamos na sala de ensaio, compartilhávamos as impressões do dia, as frustrações e as reflexões sobre o trabalho. Mesmo passando a maior parte do tempo sentados, apenas observando, sentíamos nossos corpos exaustos ao final do dia.

Então, o que eu posso dizer dessa experiência? Que ela foi extremamente enriquecedora e angustiante. Enriquecedora, porque temos o privilégio de trabalhar com teatro em tempo integral com uma das maiores mestras da contemporaneidade. Angustiante, porque o trabalho é extremamente exigente e difícil.

Tive a oportunidade de subir no palco três vezes. E elas consistiram mais em erros do que em acertos. O erro faz parte do aprendizado, mas é duro se levantar depois de uma queda. Ariane tem um olhar meticuloso que rapidamente identifica se o ator está preparado ou não. As cortinas se abrem e ela tem de ser capaz de ler imediatamente quem é este personagem, onde ele está, em que estado de espírito... tudo isso dentro de uma forma precisa e de uma música interior. Bastam 30 segundos para que Madame Mnouchkine se decida. Não há tempo de "se aquecer em cena", como ela diz. Temos de criar teatro imediatamente naquele chão de concreto, muitas vezes sem a ajuda de nenhum outro elemento que o seu próprio corpo. Esse é o mínimo exigido.

É um teatro físico que exige uma resposta muito rápida do ator. O trabalho se passa entre o corpo e o coração, sem psicologismos. Estar com todos os poros extremamente abertos para receber do outro e reagir. Relembro aqui um ensinamento que um dos meus queridos professores de teatro me deixou: o máximo de esforço para o mínimo de eficiência.

Posso dizer que comecei a perceber verdadeiramente o trabalho apenas na última vez que subi no palco. Uma situação extremamente concreta foi criada pelos atores do Soleil: tratava-se de uma audição ficcional para uma companhia de teatro regida por uma diretora extremamente aterrorizante (sim, uma paródia clara ao Théâtre du Soleil e à Ariane Mnouchkine). Nós, participantes, éramos jovens candidatos amedrontados. Tudo que tínhamos de fazer era mergulhar na situação criada e reagir. É simples, mas não é fácil.

Então, tentei me alimentar e me deixar ser afetada cada vez mais pelo terror criado em cena. Encontrar esse medo verdadeiro no meu íntimo e expressá-lo em meu corpo. À medida que isso ia crescendo no meu íntimo, mais o meu corpo se disponibilizava para o jogo e mais eu acreditava no que acontecia em cena. Crescia em mim um personagem aterrorizado, mas guiado por uma atriz que cuidava de manter a calma para traduzir esse personagem em um desenho claro e definido. Não havia tempo para pensar, refletir. Tudo era extremamente rápido e tudo que podíamos fazer era reagir. Confiar na ficção criada pelo seu parceiro, deixar a imaginação nos mergulhar na brincadeira, engajar o seu corpo inteiro e de forma verdadeira.

Acabada a improvisação, Ariane Mnouchkine destacou que eu e alguns outros atores começavam a compreender finalmente por onde passa o trabalho. Para mim, foi preciso muitos dias de observação e muitos "nãos" em cena.

Cada participante teve um caminho diferente. Alguns apreenderam rapidamente o trabalho que esse tipo de teatro exige. Outros, como eu, demoraram mais ou terminaram a oficina sem ainda terem compreendido. Os primeiros formaram um seleto grupo A, de atores locomotivas, ou seja, de atores que de uma certa maneira iriam guiar o gigantesco grupo B.

Talvez por sermos muitos dentro de um tempo reduzido, Ariane Mnouchkine se preocupou mais em desenvolver os membros do grupo A. Ela acreditava que poderia ser mais eficiente como aprendizado a observação da evolução deste grupo. Não sei afirmar o quanto essa divisão realmente favoreceu um aprendizado. Mas, essa é a forma que Ariane Mnouchkine trabalha em todas as oficinas que ministra.
E assim passamos por coros e corifeus, improvisações de diversos formatos e, por último, máscaras da comédia dell'arte, máscaras balinesas e máscaras indianas de Chauu. O trabalho com as máscaras foi muito rápido e apenas pouquíssimos atores puderam passar por ele. Os participantes que iriam trabalhar aquele dia eram preparados com figurinos completos de acordo com a máscara escolhida. Normalmente, apenas um ator era trabalhado por vez durante mais ou menos uma hora.

Grande parte dos atores ali presentes nunca tiveram contato com nenhuma daquelas máscaras. Alguns nunca tinham ouvido em falar em comédia dell'arte. Ariane Mnouchkine falou muito pouco sobre cada máscara. Preocupou-se apenas em falar sobre as características básicas de cada uma sem impor formas físicas determinadas. Gradualmente, fomos descobrindo cada máscara e era curioso perceber como que atores indianos que nunca tinham visto um trabalho com comédia dell'arte, por exemplo, chegavam nas mesmas posturas clássicas, nos mesmos lazzis descobertos há muitos anos por atores italianos.

...

Agora, olho pra trás e tento compartilhar com vocês o que a École Nomade significou para esta atriz brasileira. Sinto-me privilegiada de ter participado dessa última École num dos berços do teatro mundial. Acredito que este também está sendo um momento único para o Théâtre du Soleil. É a primeira vez que a trupe vem ao país, lugar de tradições teatrais milenares. Lugar de passagem de Ariane Mnouchkine em 1964 em sua famosa viagem pela Ásia em busca pelo teatro. Lugar de constante inspiração das criações do Théâtre du Soleil.

Esperemos.


Quem quiser acompanhar mais de perto a École Nômade pode acessar o site http://institutfrancais.in/ e clicar no vídeo à direita da tela (na seção vídeo gallery). Neste vídeo vocês poderão conferir os momentos mais importantes da École Nomade . Esses vídeos estarão disponíveis por apenas 24 horas.