segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Sobre o tempo

Estava dentro do Théâtre du Soleil pensando sobre o que escrever essa semana. Pensava sobre o blogue e sobre como uma semana passa rápido por aqui. "Logo, logo a minha residência chega ao fim e estarei de volta ao Brasil. Terei passado dois meses assistindo aos ensaios..." Foi quando me dei conta. Estou há quase dois meses assistindo o processo de criação e o Soleil ainda está no início de tudo. Com dois meses, muitos espetáculos no Brasil já estão bem encaminhados. E aqui, o espetáculo ainda é um bebê.

O trabalho de criação tem um ritmo muito diferente do dia a dia. O tempo tem outra espessura. Esse ingrediente - tempo - é uma das principais diferenças entre o teatro de pesquisa e o teatro comercial. Enquanto muitas produções tomam entre três e quatro meses, o Théâtre du Soleil leva em torno de um ano para finalizar um espetáculo. E trabalha-se muito durante esse tempo. Como já citei anteriormente, a trupe trabalha em média 10 horas por dia, 05 dias na semana (sendo que esse tempo tende a crescer com o passar dos meses). Fora da rotina de trabalho, temos praticamente tempo apenas para comer e dormir. Mesmo nos finais de semana, vários atores aproveitam para pesquisar, preparar ou confeccionar algum material necessário para a sua improvisação.

Durante a semana, metade da tarde é dedicada à concoctage, ou seja, elaborar uma improvisação a partir de uma visão, encontrar os elementos concretos com que se possa jogar, elaborar como torná-la viável tecnicamente. Depois precisam procurar referências, construir algum aparato cênico, encontrar o figurino apropriado... Só depois a improvisação está pronta para entrar em cena. Algumas delas demoram dias para estar pronta. O restante da tarde muitas vezes não é suficiente para mostrar todas as improvisações preparadas e assim trabalha-se noite adentro.

Quando eu estava na Índia, perguntei a um dos atores da trupe por que ele não participava de nenhuma improvisação. "Tenho uma visão, mas não sei ainda como desenvolvê-la" e me contou rapidamente do que se tratava. Era uma situação totalmente dentro do tema proposto e eu me perguntava "por que você não a faz então?". E ele me respondeu "preciso preparar melhor...". Quase um mês depois vejo a improvisação dele se concretizar no palco. Durante esse tempo, via-o conversando com diversos atores da trupe, olhando algumas fotos de referência...

A questão é que a visão existia - uma imagem muito clara e potente. Mas, era preciso que essa visão se tornasse uma improvisação. E para isso, é preciso encontrar a matéria necessária para o jogo cênico: onde tudo se passa, em que momento do dia e da estória dada, quem são as personagens envolvidas, por que elas estão envolvidas; quais são as ações realizadas, em qual estado físico estão as personagens, qual é a sua música interna, qual é a motivação para o desencadeamento dos eventos; como serão feitas as entradas, como realizar tecnicamente, para onde essa improvisação pode caminhar. Depois de que tudo isso, ainda é preciso ensaiar alguma movimentação mais complexa, providenciar a ajuda de outros atores que poderão manipular algum elemento da cena - do ator à fumaça, conversar com Jean-Jacques Lemêtre (o músico) e suas assistentes, responsáveis por um banco de sons gigantesco. Muitos atores escrevem páginas e mais páginas de texto que podem dizer em cena. E pode ser que tudo mude durante a improvisação. E pode ser que a improvisação não funcione.

Entre uma improvisação e outra, Ariane Mnouchkine observa o que a cena pede, ou seja, se é necessário acrescentar ou retirar algo do espaço cênico, se precisa haver alguma modificação na iluminação. Modifica o espaço em um dia para no dia seguinte mudar de ideia. Assim como as improvisações, pode ser que a mudança funcione ou não.

Após quase dois meses de ensaio, a dramaturgia ainda é muito embrionária. No caso desse espetáculo em que o ponto de partida vem de um tema e não de um texto previamente escrito, os atores são os primeiros autores. A estória vai se construindo pouco a pouco através das improvisações. Tudo é descoberto em cena.

Uma frase frequentemente dita por ela é que o único luxo que o Théâtre du Soleil possui é o tempo. Eu não concordo. O Théâtre du Soleil tem à disposição uma estrutura material e artística invejável. Mas, certamente, o tempo é um dos grandes luxos da trupe. Sustentada em parte pelo poder público francês, o Soleil defende com unhas e dentes que é preciso de tempo para realizar um espetáculo teatral de qualidade. E não é o público que vai contestar isso. O último espetáculo da trupe - Macbeth - ficou cerca de um ano em cartaz na Cartoucherie e contava com plateia cheia em todas as seis apresentações semanais.

Num mundo globalizado regido pela otimização do tempo, esquecemos por vezes que o teatro é artesanal. O artesão precisa de tempo para deixar o couro amaciar.

Tempo, esse mano velho.

...

Pra quem não entendeu a referência, aqui vai a música do Pato Fu "Sobre o tempo".
https://www.youtube.com/watch?v=KaGDbuXqP0s 

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