quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

"Se vamos falar sobre monstruosidades, temos de pensar como monstros"

Recesso. Após várias discussões, a trupe decidiu que era necessário conhecer mais a Índia por dentro. Agora, cada um tem explorado esse país milenar da sua própria maneira. Durante esse breve intervalo, se assim podemos chamá-lo, eu aproveito para estar em casa, recarregando as baterias para a reta final.

Nesse mês de janeiro, o Soleil encontrou um pequeno embrião do que será o seu próximo espetáculo. Não afirmo que vislumbro com clareza o produto final - afinal é tanta coisa que acontece dentro de uma criação, não é mesmo? -, mas acredito que toda a equipe volta para a França embebida de algo de essencial.

Vocês devem estar se questionando o que tudo isso tem a ver com o título desse texto. Gostaria de voltar um pouco no tempo e retomar aquela última semana de ensaios da qual ainda não consegui falar sobre. Para mim, ela poderia começar com a seguinte pergunta.

Para quê teatro?

Às vezes é preciso relembrar do por quê de fazermos teatro. Para além do prazer estético e pessoal. Para além da vontade de se colocar em cena. Para além da necessidade de sobrevivência da alma. E foi essa pergunta que foi levantada na sala de ensaio do Théâtre du Soleil por nem mais e nem menos que Ariane Mnouchkine.

Explico.

Em um dos dias de ensaio, como era de costume por aqueles dias, os atores estavam focados  em descobrir novos personagens, novas situações, algo que funcionasse, que desse certo em cena. Cada improvisação era seguida de um comentário da encenadora: o que funcionava em cena, o que era interessante e o que não era. Mas, em um determinado momento, Mnouchkine ficou em silêncio. Já era final de tarde.  Olhava para o chão. Pés um pouco inquietos. Dedos que procuravam alguma coisa invisível. Os atores a observavam ansiosos. Algumas vezes, isso acontecia nos ensaios, mas mesmo assim todos nós sempre aguardávamos com ansiedade para ouvir o que ela tinha a dizer. Após um pequeno período de tempo, Mnouchkine respirou fundo. E então disse. Nesse dia algumas improvisações já haviam sido feitas. Diferente dos dias anteriores marcados por uma tendência cômica, naquele dia as improvisações tinham sido em sua maioria dramáticas.

Ariane Mnouchkine começou brincando: "está parecendo que vocês estão dizendo já brincamos o suficiente, fizemos umas cenas engraçadas. Agora vamos trabalhar de verdade." Algo desse gênero. Depois, ela respirou e disse "precisamos nos responsabilizar pelo o que mostramos em cena, ir mais a fundo".  Foi nessa mesma ocasião que ela disse a frase do título. Gostaria de conseguir lembrar com exatidão todas as palavras ditas por ela.

A fala dela ecoou em mim como as ondas produzidas por uma pedra que é jogada no lago. Uma série de questões começaram a povoar a minha cabeça. Até que ponto assumimos a responsabilidade pelo o que colocamos em cena? Por um personagem que damos vida? Temos de ser responsáveis pelos discursos que abrimos ao mundo. Verdadeiramente. Quantos Macbeths existem por aí? Quantos Hamlets e Ofélias? Quantas Medeias? Falamos de um mundo real através de um drama ficcional. Precisamos sim ir mais a fundo. No que realmente tem de urgente e de perigoso. Falar de algo e encarar todas as consequências.

O fazer teatral está completamente ligado a isso.

Mnouchkine parou e se lembrou de uma das improvisações apresentada. Apesar de ter sido mal executada, o tema da improvisação era extremamente inquietante. Se tratava de um tema atual e pesado. Uma daquelas cenas que assistimos no noticiário e temos vontade de chorar. Mas, até aquele momento, era apenas uma improvisação não muito bem sucedida que propunha um tema relevante. Como observadora, a improvisação não tinha me afetado muito.

Era justamente essa improvisação que incomodava Ariane Mnouchkine. Ela tentava entender, porque que a improvisação havia fracassado, afinal se tratava de uma visão forte realizada por atores muito competentes... E então teve uma visão.

Reuniu um grupo de atores, Jean-Jacques Lemêtre e suas assistentes. Conversavam em particular  preparando uma surpresa para o restante da trupe. Depois, começaram a correr de um lado para o outro, preparando a nova tentativa. Uma espera inquietante de 30 minutos até que tudo estivesse preparado. Os atores disseram "nós estamos prontos" e Ariane respondeu "nós também".

A improvisação teve início. Havia uma grande transformação no espaço que me fazia ter a sensação que eu não estava mais dentro daquele teatro em Pondicherry. O ar parecia mais pesado. Eu não entendia imediatamente quem eram cada um dos personagens ou o que estava acontecendo, mas percebia que todos estavam carregados internamente e que eles, os personagens, sabiam exatamente o que eles estavam fazendo. Estavam no presente, realizando ações concretas. Havia uma certa urgência que fazia a estória prosseguir e que prendia o meu olhar. Sem que a improvisação fosse interrompida, Ariane Mnouchkine ia direcionando os atores como uma chefe de orquestra. Pouco a pouco, o público entendia que a cena se encaminhava para o evento principal. Eu quase prendia a minha respiração. Já sabia o que ia acontecer, mas estava envolvida completamente. Não era apenas a minha racionalidade que me dizia da gravidade do tema. Era o meu corpo inteiro, os meus pulmões, o meu coração, a minha pele. O ápice chegou e depois, o desfecho. A sala estava muda.

Madame Mnouchkine tinha conseguido potencializar a força daquela primeira visão. Sendo uma  encenadora, conseguiu escolher uma outra forma de apresentar aquele tema que o tornava mais perigoso para quem assistia. Para os atores, deu ações concretas, um estado de urgência. Antes, a improvisação apenas ilustrava a situação sugerida. Era potente, mas faltava ação. Sem perceber, os atores haviam pintado uma imagem que não tinha para onde ir. Não havia transformação do espaço. Vários atores eram meros figurantes. Não colaboravam em adicionar mais uma camada de sentido no quadro geral. Eram apenas pessoas que preenchiam o espaço. Mesmo sendo ilustrativo, não compreendíamos o que, onde ou quando. Como observadora, aquilo não me afetava. Poderia sair dali e tomar um café como se nada tivesse acontecido.

Já a segunda tentativa foi completamente diferente. Havia uma transformação do espaço. Uma ação era encadeada pela outra. Havia ritmo, uma música interna. Cada personagem, por menor que fosse, era essencial, pois ajudava a construir o sentido da cena. O público mergulhava no universo. Tínhamos a impressão de vermos um recorte de uma vida que transbordava aquele momento e aquele espaço. Os atores estavam vivos. Se colocavam em risco. E nós, público, não conseguíamos fingir que nada estava acontecendo. Sentíamos o peso, a dor, a profundidade.

Ariane Mnouchkine mostrava no palco o que significava ser responsável e ir a fundo. Lembro agora de uma frase que era frequentemente repetida por ela durante a École Nomade: "fazer teatro é mais perigoso que isso. Não é tão fácil assim. É mais urgente, exige mais de você".

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