segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Mais próximos do que supomos

Um dia desses, vi um vídeo na internet que me chamou muita a atenção. Nele, o interlocutor discutia a relação entre cultura e desenvolvimento social, político e econômico. Defendia, em suma, que o nosso comportamento individual - em parte determinado pela cultura - afeta diretamente o desenvolvimento de todo um país. Provavelmente você deve estar se perguntando porque eu estou falando sobre isso aqui e não sobre teatro, não é? Já, já, chego lá e, quando chegar, espero que você entenda o que eu quero dizer com tudo isso.

Bem, o fato é que o vídeo me deixou tão incomodada que eu comecei a observar o comportamento das pessoas em meu entorno. Como vocês podem imaginar, o meu entorno atualmente é o Théâtre du Soleil. Após o pequeno período de recesso, a trupe retornou para a França e retomou os ensaios. Na minha cabeça, acreditava o tempo todo que a rotina do Soleil em casa seria completamente diferente daquela estabelecida na Índia. Mas, eu estava errada. O que eu vi foi exatamente a tentativa de preservar o máximo possível a mesma rotina de trabalho: os horários, o treinamento, as improvisações, a configuração dos espaços... Era como se ainda estivéssemos na Índia.

Na verdade, era como se estivéssemos na França. Porque, era o Soleil que tentava reproduzir a sua rotina de trabalho na Índia e não o inverso. Em um espaço menor, como o era na Índia, é mais fácil de perceber como toda a equipe está o tempo todo trabalhando junta.

Passa-se o dia inteiro juntos. Treina-se juntos. Come-se juntos. Cria-se juntos. Falamos de uma companhia de teatro com uma estrutura bastante complexa que praticamente vive junta. Da encenadora ao estagiário. E é assim desde muito tempo.

Não é fácil viver em coletivo. Após quase seis meses vivendo com a trupe, posso dizer isso com segurança. Muitas vezes para que o coletivo consiga prosseguir, é preciso fazer concessões. Por exemplo, é preciso saber dividir o espaço, dividir a comida, conviver com pessoas agradáveis e desagradáveis. Regras implícitas ou explícitas que devem ser seguidas à risca, sem exceções: não chegar atrasado, não usar os sapatos da rua no espaço de trabalho, não entrar/sair da sala de ensaio durante uma improvisação.

Essa noção de coletividade é extremamente forte no Théâtre du Soleil. É fácil entender o por quê se pensamos que se trata de quase 100 pessoas cohabitando o mesmo espaço todos os dias. Afinal de contas, ter banheiros limpos é essencial. Ter uma sala de ensaio limpa também. Para a trupe, é importante que todos ali passem pelo trabalho na cozinha, na bilheteria, na recepção do público, na administração, na técnica... Por vezes, vemos até mesmo Madame Mnouchkine botando a mão na massa. Em algumas ocasiões festivas do Soleil, Ariane Mnouchkine ajuda a cozinhar e a servir os convidados. Nos dias de apresentação, é ela que recebe o público na porta de entrada e ajuda a recolher os bilhetes. Mas, a coletividade é considerada fundamental também para a criação. Afinal, no teatro precisamos do outro para criar.

No caso do Soleil, até mesmo a criação de um personagem se dá de forma coletiva. Às vezes um ator propõe um personagem ou uma situação interessante para o espetáculo, mas não consegue desenvolvê-lo. Então, um outro ator irá substituí-lo na tentativa de continuar o trabalho que o primeiro iniciou. Normalmente se trata de um ator-locomotiva, ou seja, uma espécie de ator curinga que possui a responsabilidade de guiar os outros atores na criação, seja porque ele é um ator mais experiente e, portanto, mais familiarizado com o modo de criação do Soleil, seja porque ele é um grande improvisador. Mesmo assim, isso não significa que o jogo está ganho. Às vezes ele é bem sucedido e às vezes não. Então, este será substituído por outro ator ainda, locomotiva ou não, que tiver alguma visão relacionado ao personagem/situação em questão. E é assim que o trabalho vai se desenvolvendo.

Fora de cena a relação é a mesma. Os atores precisam das figurinistas para ajudar a montar o personagem, preparar um tipo de vestimenta.... da mesma forma que o arquiteto precisa do engenheiro para subir um prédio. E as figurinistas precisam do desenvolvimento das improvisações para elaborar o figurino do espetáculo. Em um mundo cada vez mais globalizado, isso é ainda mais real, não é mesmo? Todos precisam de todos. Verdadeiramente. Os estagiários são requisitados para auxiliar aos atores a preparar as improvisações. Assim como os engenheiros não conseguiriam subir prédio nenhum sem o pedreiro. Não estamos sozinhos no mundo. E o que seria um grupo de teatro que uma pequena amostra desse nosso mundo?

Um comentário:

  1. Preciso confessar que atualizo seu blog todos os dias na esperança de ter post novo. Como te disse sou apaixonado pelo Théâtre Du Soleil e espero um dia viver esse sonho que você está vivendo... Dizem que quando perseguimos muito um sonho ele começa a nos perseguir... Quarta-feira começo aula de francês e você já pode imaginar o motivo né? Sou muito grato por seu blog e fico encantado com cada post rico em detalhes. Imagino cada detalhe e rezo baixinho pra que um dia eu chegue ao Théâtre Du Soleil.
    O Théâtre Du Soleil é minha grande inspiração e modelo vivo do teatro que pretendo para minha vida... Essencial o outro no processo de criação.
    Um forte abraço e saiba que suas palavras são muito importantes para mim.

    Roberto Filho

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