domingo, 3 de janeiro de 2016

O teatro de Mnouchkine e eu

Após 12 dias de trabalho, a École Nômade se encerra na Índia. O projeto que durou mais ou menos 6 meses em três continentes diferentes agora termina. Pelo menos, por agora. Amanhã, o Théâtre du Soleil começa uma nova criação. Mas, se vocês me permitirem, gostaria de frear um pouco o tempo e usar esse espaço para compartilhar e refletir o que foi a École Nomade.

A primeira coisa que posso dizer é que foi uma experiência muito intensa para todos ali presentes. Durante três semanas - trabalhamos do dia 14 ao dia 30 de dezembro folgando apenas no Natal e nos finais de semana -, nosso cotidiano se resumia em experimentar e observar o teatro que o Soleil acredita. Acordávamos cedo para chegarmos pontualmente na oficina e dormíamos cedo para termos energia para o dia seguinte. A maioria dos participantes dormiu em um mesmo hotel gratuito oferecido pela produção local. Portanto, mesmo quando não estávamos na sala de ensaio, compartilhávamos as impressões do dia, as frustrações e as reflexões sobre o trabalho. Mesmo passando a maior parte do tempo sentados, apenas observando, sentíamos nossos corpos exaustos ao final do dia.

Então, o que eu posso dizer dessa experiência? Que ela foi extremamente enriquecedora e angustiante. Enriquecedora, porque temos o privilégio de trabalhar com teatro em tempo integral com uma das maiores mestras da contemporaneidade. Angustiante, porque o trabalho é extremamente exigente e difícil.

Tive a oportunidade de subir no palco três vezes. E elas consistiram mais em erros do que em acertos. O erro faz parte do aprendizado, mas é duro se levantar depois de uma queda. Ariane tem um olhar meticuloso que rapidamente identifica se o ator está preparado ou não. As cortinas se abrem e ela tem de ser capaz de ler imediatamente quem é este personagem, onde ele está, em que estado de espírito... tudo isso dentro de uma forma precisa e de uma música interior. Bastam 30 segundos para que Madame Mnouchkine se decida. Não há tempo de "se aquecer em cena", como ela diz. Temos de criar teatro imediatamente naquele chão de concreto, muitas vezes sem a ajuda de nenhum outro elemento que o seu próprio corpo. Esse é o mínimo exigido.

É um teatro físico que exige uma resposta muito rápida do ator. O trabalho se passa entre o corpo e o coração, sem psicologismos. Estar com todos os poros extremamente abertos para receber do outro e reagir. Relembro aqui um ensinamento que um dos meus queridos professores de teatro me deixou: o máximo de esforço para o mínimo de eficiência.

Posso dizer que comecei a perceber verdadeiramente o trabalho apenas na última vez que subi no palco. Uma situação extremamente concreta foi criada pelos atores do Soleil: tratava-se de uma audição ficcional para uma companhia de teatro regida por uma diretora extremamente aterrorizante (sim, uma paródia clara ao Théâtre du Soleil e à Ariane Mnouchkine). Nós, participantes, éramos jovens candidatos amedrontados. Tudo que tínhamos de fazer era mergulhar na situação criada e reagir. É simples, mas não é fácil.

Então, tentei me alimentar e me deixar ser afetada cada vez mais pelo terror criado em cena. Encontrar esse medo verdadeiro no meu íntimo e expressá-lo em meu corpo. À medida que isso ia crescendo no meu íntimo, mais o meu corpo se disponibilizava para o jogo e mais eu acreditava no que acontecia em cena. Crescia em mim um personagem aterrorizado, mas guiado por uma atriz que cuidava de manter a calma para traduzir esse personagem em um desenho claro e definido. Não havia tempo para pensar, refletir. Tudo era extremamente rápido e tudo que podíamos fazer era reagir. Confiar na ficção criada pelo seu parceiro, deixar a imaginação nos mergulhar na brincadeira, engajar o seu corpo inteiro e de forma verdadeira.

Acabada a improvisação, Ariane Mnouchkine destacou que eu e alguns outros atores começavam a compreender finalmente por onde passa o trabalho. Para mim, foi preciso muitos dias de observação e muitos "nãos" em cena.

Cada participante teve um caminho diferente. Alguns apreenderam rapidamente o trabalho que esse tipo de teatro exige. Outros, como eu, demoraram mais ou terminaram a oficina sem ainda terem compreendido. Os primeiros formaram um seleto grupo A, de atores locomotivas, ou seja, de atores que de uma certa maneira iriam guiar o gigantesco grupo B.

Talvez por sermos muitos dentro de um tempo reduzido, Ariane Mnouchkine se preocupou mais em desenvolver os membros do grupo A. Ela acreditava que poderia ser mais eficiente como aprendizado a observação da evolução deste grupo. Não sei afirmar o quanto essa divisão realmente favoreceu um aprendizado. Mas, essa é a forma que Ariane Mnouchkine trabalha em todas as oficinas que ministra.
E assim passamos por coros e corifeus, improvisações de diversos formatos e, por último, máscaras da comédia dell'arte, máscaras balinesas e máscaras indianas de Chauu. O trabalho com as máscaras foi muito rápido e apenas pouquíssimos atores puderam passar por ele. Os participantes que iriam trabalhar aquele dia eram preparados com figurinos completos de acordo com a máscara escolhida. Normalmente, apenas um ator era trabalhado por vez durante mais ou menos uma hora.

Grande parte dos atores ali presentes nunca tiveram contato com nenhuma daquelas máscaras. Alguns nunca tinham ouvido em falar em comédia dell'arte. Ariane Mnouchkine falou muito pouco sobre cada máscara. Preocupou-se apenas em falar sobre as características básicas de cada uma sem impor formas físicas determinadas. Gradualmente, fomos descobrindo cada máscara e era curioso perceber como que atores indianos que nunca tinham visto um trabalho com comédia dell'arte, por exemplo, chegavam nas mesmas posturas clássicas, nos mesmos lazzis descobertos há muitos anos por atores italianos.

...

Agora, olho pra trás e tento compartilhar com vocês o que a École Nomade significou para esta atriz brasileira. Sinto-me privilegiada de ter participado dessa última École num dos berços do teatro mundial. Acredito que este também está sendo um momento único para o Théâtre du Soleil. É a primeira vez que a trupe vem ao país, lugar de tradições teatrais milenares. Lugar de passagem de Ariane Mnouchkine em 1964 em sua famosa viagem pela Ásia em busca pelo teatro. Lugar de constante inspiração das criações do Théâtre du Soleil.

Esperemos.


Quem quiser acompanhar mais de perto a École Nômade pode acessar o site http://institutfrancais.in/ e clicar no vídeo à direita da tela (na seção vídeo gallery). Neste vídeo vocês poderão conferir os momentos mais importantes da École Nomade . Esses vídeos estarão disponíveis por apenas 24 horas.

10 comentários:

  1. Oi Juliana! Te desejo um 2016 lindo e com muita arte... Durante estes dias sempre abria seu blog para ver se tinha mais algum post e hoje felizmente tinha. Talvez a felicidade ou infelicidade do teatro seja esta, algumas coisas só serão digeridas depois de um longo tempo mas, a verdadeira essência é sempre manter um ponto de mudança em você mesmo... Que oportunidade linda e dos sonhos esta que lhe foi ofertada pela vida, espero muito um dia passar por tal experiência. Você acredita que essa oficina itinerante possa vir para o Brasil? Abraços desde já!

    Depois de ler e acompanhar seu blog tomei coragem de criar um diário de bordo também... passa lá? Bjs

    http://www.umjovemator.blogspot.com.br/

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    1. Oi! Desejo um excelente 2016 pra você também é muito teatro! Realmente essa experiência tem sido transformadora e vou tentar sempre compartilhar com vocês. Sobre a École Nomade no Brasil, eu realmente não sei, pelo menos não por agora. Agora o Soleil começa um novo processo de criação e vai demorar para eles terem tempo de retomar esse projeto.

      Vamos torcer pra que eles passem pelo Brasil, né?

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  2. Thank you for sharing this Juliana. Wish you a great year of theatre making. Hope to see you again soon.

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  3. Ju, imagino que tenha sido uma experiência super intensa, difícil e provocadora. Boas vibrações para 2016! :)

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    1. Obrigada Izza! Sim! Uma experiência transformadora! Boas vibrações pra você também :)

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  4. Oi Ju!

    Fiquei sabendo que houve um terremoto na Índia ao assistir a TV. Vc está bem? Não teve como não pensar em vc e a trupe de soleil.

    Espero do fundo de meu coração que vc esteja bem.

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  5. Oi!

    Não sentimos nada por aqui e nem ficamos sabendo do terremoto. Talvez ele tenha acontecido em uma região longe daqui.

    Obrigada pela preocupação e até logo!

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  6. Oi Ju! Que bom... fico feliz!

    Ju você poderia fazer um post contando o passo a passo do procedimento que vc fez para realizar o estágio? Incluindo contatos para tal realização como o email do responsável pelo estágio no Soleil? Ou poderia enviar um email me contanto? Sonho em realizar esse estágio num futuro próximo e gostaria de ter algum contato para realizar essa conversa num futuro próximo.

    Meu email: robertovieiraalmeida@hotmail.com

    Grande bj e obrigado desde já!

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    1. Oi Roberto!

      Fiquei um pouco em dúvida sobre a sua pergunta: você diz sobre a École Nomade ou sobre o meu projeto como um todo?

      Bom, sobre a École Nomade, eu fiquei sabendo através da internet e me inscrevi normalmente (http://pondichery.afindia.org/cultural-center/theatre-su-soleil-ecole-nomade/). Realmente não sei te responder quando terá (e se terá) uma outra École Nomade num futuro próximo.

      Sei que de tempos em tempos, o Théâtre du Soleil faz um desses grandes estágios (oficinas) na sua sede, em Paris, mas também não sei dizer quando haverá um próximo e como se inscrever (a última aconteceu em 2009).

      Nesses dois casos, você teria de entrar em contato com o escritório do Théâtre du Soleil para eles te darem mais informações e orientações.

      Sobre o meu projeto, ele é viabilizado através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte e é graças a ele que estou acompanhando o Soleil. O Théâtre du Soleil recebe muitas pessoas interessadas em pesquisar sobre eles ou que simplesmente querem conhecer ou ajudar de maneira voluntária.

      Bom, de qualquer maneira, a melhor forma de se informar sobre tudo isso é diretamente com eles. Você pode escrever para eles em francês, inglês ou espanhol. Você encontra o contato deles no site (www.theatre-du-soleil.fr).

      Espero ter te ajudado!

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