domingo, 10 de janeiro de 2016

Visões

O momento da criação de um espetáculo é o momento mais especial e caótico que pode ser vivido por uma trupe de teatro. É o momento da efervescência, mas também do vazio. Das descobertas e dos questionamentos sem fim... Quem já vivenciou algum processo de criação sabe exatamente do que eu estou falando. E quando essa criação se dá em grupo, ela é muito mais intensa.

Nesse sentido, o Théâtre du Soleil não é uma exceção. Ele também tem as suas crises, as suas alegrias. Dias bons e dias ruins.

Sinto-me privilegiada em poder testemunhar esse momento tão peculiar da vida do Théâtre du Soleil e de poder escrever sobre ele aqui para vocês. No entanto, tal qual uma hóspede que respeita as regras da casa onde visita, eu não poderei revelar para vocês tudo sobre a criação. Mas, prometo que tentarei da melhor forma possível compartilhar aquilo que estiver em meu poder.

...

Durante o período de Ano Novo, vi aos poucos a pequena cidade de Pondicherry ser invadida por membros do Théâtre du Soleil. A cada nova esquina, um técnico, um membro da produção, um e outro ator... Era engraçado perceber que dentro da Índia crescia uma França. Até o cozinheiro estava por aqui! E por que? Ninguém sabia de fato qual seria a sua função na nova produção. Até o primeiro dia de ensaio, apenas Ariane Mnouchkine e Jean-Jacques Lemêtre sabiam exatamente qual seria o tema da criação. Um grande mistério para eles e para mim que não sabia se poderia realmente ou não assistir aos ensaios.

E no dia 04 de janeiro, o Théâtre du Soleil iniciou oficialmente os seus ensaios. Cerca de 100 pessoas se espremendo e se adaptando a essa nova casa na Índia que é a metade do espaço que normalmente se dispõe na Cartoucherie. Todos estão presentes desde o primeiro dia: músicos, figurinistas, atores, técnicos, produtores, iluminadores, cenógrafos, dramaturga... Desde o primeiro dia, todos trabalham juntos na criação.

O trabalho começa às oito e meia da manhã e só vai terminar às seis ou sete horas da noite. Durante o período da manhã, a trupe se dedica a pesquisar e a aprender a fonte de pesquisa que vieram buscar na Índia. O período da tarde é reservado para a criação propriamente dita.

É engraçado observar como que a maneira de trabalhar do Théâtre du Soleil não se difere muito do que foi feito na École Nomade. Primeiramente, os atores se reúnem para concocter, ou seja, para combinar improvisações. Às vezes, isso acontece em roda em que os atores compartilham visões e formam grupos de trabalho.

Aqui vale um parênteses. O termo "visões" é muito utilizado no Théâtre du Soleil. Uma visão significa uma imagem concreta de uma situação ou de um personagem. Poderíamos talvez dizer que seria uma ideia, termo que faz tremer Ariane Mnouchkine. Por que? Porque ideia faz referência à alguma coisa intelectual e que não necessariamente implica em uma ação concreta. Já uma visão não necessariamente passa por uma elaboração intelectual. A palavra visão já imputa uma carga mais emocional ou intuitiva, algo que se passa mais pelo corpo do que pelo intelecto. A visão é algo de tão forte que já traz uma carga emocional e uma concretude, seja para um personagem, seja para uma situação.

A partir dessa visão, os atores de reúnem para concocter, ou seja, para desenvolver uma situação de jogo mais clara. Onde estamos? Quem são os personagens? Em que estados se encontram? Qual ação realizam? Por que realizam essas ações? Após terem entrado em acordo sobre esses elementos, vão preparar questões de ordem prática. Passam por Marie-Hélène, a figurinista, que ajuda a construir a pele dos personagens. Passam por Jean-Jaques Lemêtre, o músico, e compartilham a visão para que ele já elabore algum material sonoro para a improvisação. Passam pelos técnicos se precisam de construir algum elemento de cena.

É nessa parte da tarde que a trupe - atores, músicos, figurinistas, iluminadores, etc - vão tentar transbordar para a criação aquilo que têm pesquisado no período da manhã. Às vezes, Hélène Cixous, a dramaturga, traz alguma proposta de texto que será experimentada pelos atores. E os atores vão se utilizar de tudo que for preciso para concretizar as suas visões.

Então, todos se assentam na arquibancada para dar início ao trabalho de criação. Ariane Mnouchkine dá orientações para os atores "esse é o momento que vocês podem tudo. Não tenham medo de serem ridículos ou de errarem. Esse é o momento para sermos o mais criativo possível. Coragem!".

E o primeiro corajoso grupo sobe ao palco.

Na maior parte das vezes, a improvisação não chega ao fim. Ou sofre mudanças em seu curso. Alguma coisa que foi planejada não acontece em cena ou Ariane Mnouchkine direciona a improvisação para outro lugar. Muitas vezes, a improvisação não é um sucesso. Falta concretude. Falta ação. Falta estado. A visão não é forte suficiente. Mesmo quando os atores são muito experientes. Mesmo quando os atores preparam bem a visão. 

Como cães cegos, os atores farejam, tentam, experimentam, jogam-se no desconhecido. Ariane Mnouchkine com sua larga experiência e habilidade tenta guiá-los sem saber para onde estão caminhando. Afinal, seria a obra apresentada à ela através dos atores ou vice-versa? Durante as improvisações, mais perguntas do que respostas. Muitos questionamentos, reflexões, dúvidas.

Cada improvisação abre uma porta completamente diferente. Cada porta é um universo de possibilidades. E isso é assustador. Por onde seguir? Com a sabedoria de uma pessoa que faz teatro há 50 anos, Ariane Mnohckine acalma os atores: "não é hora de fazer escolhas. Esse momento vai chegar, mas estamos somente na primeira semana, não é mesmo?" A busca se dá no palco, em cena, no corpo.

Após as improvisações do dia, Ariane Mnouchkine troca algumas palavras com a equipe. "Alguém tem algo de encorajador para dizer?". E muitas vezes, algum ator compartilha alguma reflexão, alguma frase, algum acalento. Um dia de trabalho com seus bons e maus momentos. Os primeiros dias de trabalho. 

E assim cada um toma o seu rumo. Alguns conversam baixinho enquanto arrumam as suas coisas. Compartilham com os colegas alguma nova visão ou como retrabalhar determinada improvisação em um momento futuro. Do lado de fora, outros atores fumam um cigarro pensativos. Vemos em suas retinas as improvisações do dia, as questões, as dúvidas.

E pouco a pouco o teatro vai se esvaziando.

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