terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Do encantamento ao ofício

Depois de algumas semanas trabalhando no Théâtre du Soleil, o trabalho diário vai se tornando aos poucos uma rotina. Aquele olhar maravilhado da chegada vai dando lugar para um olhar acostumado com os rituais cotidianos da trupe. Chegar, trocar de roupa, fazer a mise en place, aquecer, comer... atividades que se repetem todos os dias.

Comecei a reparar como que na rotina do trabalho teatral, o tempo é um importante fator. Como o espetáculo tem um horário pra começar que é sempre o mesmo, todas as outras atividades acabam tendo tempos muitos precisos. A cena que MacDuff encontra com Malcom é o recreio dos atores. Nesse momento, eles comem, vão ao banheiro, descansam por dois minutos na cadeira... momentos raros durante a apresentação do Soleil. Na equipe da cozinha e do bar, o mesmo acontece: durante o primeiro ato, tem-se apenas 20 minutos para jantar, ir ao banheiro, bater papo antes do entreato.

E de repente os pequenos detalhes ganham mais relevo do que as grandes tarefas. É um dia que a máquina de lavar quebra e que toda a equipe do bar tem que fazer uma verdadeira força-tarefa para lavar tudo a tempo do intervalo; é uma atriz que vai consultar o médico e que precisa que outra pessoa faça a sua mise; é uma reunião descontraída no final do dia com um copo de cerveja ou de vinho. Uma pessoa que chega para fazer um trabalho voluntário ou um grupo escolar que vai fazer uma visita no Soleil naquele dia.

Na entrevista dada à radio Culture (da qual falei anteriormente na postagem 50 anos de imaginação), Ariane Mnouchkine diz que são os pequenos rituais que ajudam a relembrar aos atores que estão fazendo teatro. Afinal, são pessoas como qualquer outra. Os rituais cotidianos do Soleil - como bater três vezes na porta antes do público entrar, ou olhar nos olhos dos parceiros de cena antes do espetáculo começar - são como lembretes de que agora é preciso que o tempo se dilate, é preciso esquecer que fazemos isso todos os dias e é preciso viver de novo a tragédia pessoal de cada personagem.

Talvez isso explique a existência de tantas superstições dentro do mundo teatral e dentro do Théâtre du Soleil. Lá, não podemos usar a cor verde, não podemos falar a palavra "corda", não podemos assoviar, não podemos desejar boa sorte aos parceiros (no lugar, dizem coragem ou merda)... e ainda temos as superstições do próprio Soleil como a interdição de pintar a parede de budas. A parede que foi assim pintada durante um dos primeiros espetáculos do Soleil diz trazer boa sorte à trupe e nunca mais foi repintada. Hoje, ela está tampada por um tecido vermelho que condiz com a concepção estética da Cartoucherie para Macbeth. Mas, nas coxias, ainda podemos ver o grande buda como um sinal de boa sorte aos atores.




Alguns atores, repetem todas as noites as ações realizadas no dia da estreia. Portanto, se o ator se sentou naquela cadeira entre uma cena e outra na estreia, é isso que ele faz todas as noites. É claro que isso é particular de alguns atores da trupe e não são uma máxima do Théâtre du Soleil. Mas, são esses pequenos rituais como um olhar que se cruza antes de entrar em cena ou um aperto de mão forte é que ajudam os atores a relembrar que estão prestes a entrar em outra vida. Seus corpos e suas mentes devem estar totalmente no presente, esvaziar-se para dar lugar ao personagem que é intenso e efêmero.

Não se deixar habituar pelo olhar automático que vai tomando conta do nosso corpo e do nosso ser. Fazer teatro todos os dias como se fosse a primeira (ou a última) vez. Oferecer o teatro - ao mesmo tempo tão sagrado e tão profano - ao público que chega com o olhar fresco e maravilhado.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Revoadas


Hoje vi pela primeira vez as fotos do velório de Guy-Claude François que morreu em fevereiro deste ano. Apesar de não ter tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, eu e milhares de outras pessoas pudemos conhecer o seu trabalho como cenógrafo do Soleil por quase 50 anos. Pelas fotos, a morte de Guy-Claude François parece ter sido especialmente sentida por toda a trupe. E fiquei pensando sobre o Théâtre du Soleil ser um lugar de passagem.

Explico-me.

Desde a minha chegada na trupe, conheci várias pessoas em trânsito. Muitos voluntários que se colocam à serviço do teatro durante um, dois, ou vários dias. Muitos empregados que possuem contrato temporário até o final da turnê de Macbeth e que depois disso não sabem muito bem qual será a sua próxima aventura; ex-membros do Soleil que aparecem para assistir o espetáculo ou para rever os velhos amigos. O Théâtre du Soleil é uma grande casa que durante 50 anos viu chegar e partir muitas pessoas. Podemos falar de gerações.

Algumas vezes, durante as refeições coletivas, pude presenciar conversas onde um perguntava ao outro "você entrou em qual espetáculo?" seguida de uma resposta como "eu sou da época do Tartufo" ou ainda um terceiro que diz que é da "entrada de 2009" (ano do último grande estágio do Soleil). Todas essas referências nos dão ideia das diferentes gerações que coexistem na trupe e dos diferentes marcos existentes em sua história. Pessoas de mais de sessenta anos que lá estão há cinquenta anos; e pessoas de vinte anos que estão apenas há dois.

O Théâtre du Soleil tem o poder de se renovar sem perder aquilo que os que chegaram antes - e até mesmo partiram - construíram. A tradição teatral amadurecida pelo Soleil durante décadas é repassada para os que chegam e que se colocam humildemente como aprendizes. É uma forma de fazer teatro e é uma forma de aprender a fazer teatro.

Nesses quase três meses de imersão na trupe, pude ver que a casa funciona também como uma grande escola da vida, lugar de passagem onde as pessoas por ali se encontram, ficam algum tempo para depois alçar outros vôos... e até mesmo voltar. É dessa maneira que o Soleil semeia o teatro. Várias pessoas que por aqui passaram formaram novos grupos de teatro em outras partes do mundo (inclusive no Brasil!) que guardam alguma coisa dessa passagem por aqui. 

Nesse mês de dezembro, uma companhia grega está apresentando o espetáculo Mataroa na sala de ensaios do Théâtre du Soleil. Acolhidos por essa grande trupe, o grupo de gregos é dirigido por Hélène Cinque que foi atriz do Soleil por muitos anos e que já possui um trabalho sólido como diretora há alguns anos. Durante os ensaios, a trupe grega participou de várias refeições coletivas na Cartoucherie e ainda contou com a orientação de Ariane Mnouchkine.

E não podemos esquecer da Aftaab - companhia afegã fundada em 2005 em um estágio dirigido pelo Soleil em Kabul. Atualmente sediada em Paris, a Aftaab é acolhida por sua grande mãe. Durante anos, a companhia Aftaab ficou fazendo viagens de ida e volta entre Kabul e Paris. Como uma boa mãe, o Soleil os ajudou a fazer um curso de profissionalização no interior da França e os abrigou nas diversas vindas à Paris. Infelizmente, devido ao cenário de violência no Afeganistão, a companhia sentiu que o melhor para eles seria ficar na Europa. Hoje, vários deles vivem nos traillers do Soleil. Entre um espetáculo e outro, a Aftaab serve de equipe de apoio para a trupe francesa ajudando na contra regragem de Macbeth, na manutenção técnica, na coordenação do trabalho da cozinha e do bar. Essas pessoas, que tem uma história de vida tão dura, são as mais gentis que já conheci.

Eu, como tantos outros que por aqui passaram, também vou levar embora comigo um pouco de Théâtre du Soleil.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Tout le monde pour le théâtre

Ontem à noite tive uma conversa muito interessante com Adolfo.

Adolfo é motorista da navette, um ônibus fretado que todos os dias leva e traz o público do metrô para a Cartoucherie. Adolfo trabalha para o Soleil há mais de 15 anos e já foi técnico, cenógrafo e ator da trupe. Hoje, por escolha própria, dirige a navette. Há anos desejava voltar a trabalhar com mecânica e veículos. A vantagem de trabalhar no Soleil, segundo ele, é a liberdade de poder fazer o que quiser.

Ele não é o único a ter uma história assim. Da cozinha para os palcos; dos palcos para a técnica; da técnica para a administração; da administração para a navette... A troca muitas vezes passa por uma vontade pessoal, mas nem sempre. Ela também depende das necessidades da própria trupe. Uma liberdade maravilhosa e, ao mesmo tempo, complexa.

A atual operadora de luz, por exemplo, começou a exercitar essa função num momento em que era necessário para o Soleil. Deixou de atuar nos palcos e começou a estudar iluminação. Uma oportunidade perfeita para um desejo antigo.

Como estagiária no Soleil, tenho a oportunidade de experimentar várias funções. Normalmente, procuro estar mais perto do trabalho dos atores – pois eles são o foco da minha investigação -, mas trabalho frequentemente na cozinha, no bar, no escritório, na livraria ou em qualquer outro setor que precisar de uma mãozinha. Dessa forma, consigo ter uma visão geral do que é essa grande e complexa trupe. É verdade que cada função tem a sua importância. Fazer o borderô da semana é tão essencial quanto lavar os banheiros. Mas, isso não significa que ambas sejam valorizadas da mesma forma, nem que seja fácil transitar de uma para a outra.

A equipe do bar e da cozinha é uma das maiores e mais complexas de todas. Nela, encontramos cozinheiros, atores, cenógrafos, encenadores, estudantes de teatro, estudantes de cinema e voluntários que vem e vão. Vários trabalham em outros lugares – como suas próprias companhias de teatro. Muitos dos atores da companhia afegã Aftaab, por exemplo, trabalham cotidianamente na cozinha da trupe mãe. Porta de entrada, alguns que lá estão nutrem o desejo de poder um dia estar nos palcos da trupe. Não posso deixar de mencionar que os próprios atores do Soleil trabalham no bar fazendo a recepção do público, momento de aproximação entre o fora e o dentro de cena.

Nos palcos, a relação relembra muito as tradições orientais de teatro onde o aprendiz deve galgar cada degrau. O ator recém-chegado passa pela função de kôken – um tipo de contrarregra -, depois por papéis secundários - como os mensageiros - para enfim representar personagens com mais destaque. Claro que isso não funciona de uma forma engessada, dependendo muito de cada processo de criação. Os atores “locomotivas” – assim chamados dentro do Soleil – vão guiar os mais novos, conduzi-los durante o período de criação, introduzi-los a forma de trabalho da trupe e transmitir conhecimento.

Na parte de administração e contabilidade, temos uma equipe que trabalha incansavelmente no escritório. Bilheteria, arquivos, e-mails, borderô, contratos, salários, balanço financeiro, cronograma, correio, telefonemas... algumas pessoas dessa equipe trabalham no Théâtre du Soleil há vários anos e tem a dura tarefa de não deixar com que o balanço financeiro esqueça do lado humano. É preciso lembrar que se trata de se fazer teatro de forma que seja acessível para o público sem abrir mão da enorme trupe e da riqueza artística dos espetáculos com seus longos processos de criação.

Na liderança dessa caravana, temos a furiosa e amorosa Ariane Mnouchkine. Sua genialidade artística e sua incrível habilidade de gestão são grandes responsáveis pelos 50 anos de (r)existência do Théâtre du Soleil. Aos 75 anos de idade, Ariane demonstra uma energia incrível para equilibrar todas as questões administrativas como as artísticas.

Ser uma cooperativa significa, em tese, abolir a relação patrão-empregado e considerar todas as funções com equidade não havendo disparidade salarial. Mas, a realidade não é bem assim. Existem as lideranças, mais ou menos espontâneas; as pequenas competitividades; as diferenças salariais. Afinal, trata-se de um grupo humano com direito às todas as delícias e dessabores.

Mesmo com todas as imperfeições, é certo que todos ali são movidos, acima de tudo, por uma grande paixão pelo teatro a que se dedica o Théâtre du Soleil. Um teatro comprometido com a arte com todo o seu esplendor onde o público é o convidado de honra e a obra o seu presente.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Sobre máscaras e mascaramentos




Uma das minhas pequenas aventuras dentro do Soleil é observar o espetáculo de dentro dos camarins. Cada ator tem um pequeno espaço com mesa e cadeira onde estão todos os acessórios de cabelo, maquiagem, perucas e uma pequena arara com seus vários figurinos e objetos de cena (foi postada uma foto dos camarins no texto O começo).

A dinâmica antes e durante o espetáculo é bem diferente. Antes do espetáculo - momento em que o público pode secretamente espiar os bastidores -, os atores estão acabando de se maquiar, de colocar o figurino e de se aquecer. Apesar de estarem concentrados, existe um leve clima de descontração. Enquanto alguns estão mais introspectivos, outros conversam sobre algum ajuste que precisa ser feito, batem papo ou até brincam uns com os outros. Afinal, eles apresentam o mesmo espetáculo todas as noites, já tendo ultrapassado a marca de 100 apresentações... Mas, quando as luzes dos camarins piscam anunciando o terceiro sinal, o ambiente se transforma completamente.

Durante as quatro horas de representação, quase não se escuta vozes. As conversas são evitadas ao máximo se resumindo a curtos diálogos cochichados. Os atores entram nos camarins, fazem uma troca de roupa (às vezes tão rápida que é necessário contar com a ajuda das três figurinistas do Soleil), refazem a maquiagem, o cabelo e voltam de novo para o palco. Por vezes, um ou outro ator tem alguns segundos a mais para tomar uma água ou para repassar rapidamente suas ações. No entanto, esses momentos são raros e normalmente vemos apenas os atores saindo e entrando rapidamente.

Observando aquele espaço quase sempre vazio, um elemento me chamou especialmente atenção: a quantidade de espelhos. Além dos quase 40 espelhos dispostos nas mesas, existem outros vários espelhos de corpo inteiro espalhados. Olhar-se no espelho é uma ação natural para os atores que precisam se maquiar e verificar o figurino. Mas, por que tantos espelhos?

Em meio ao meu diálogo interno, sou interrompida pelo ator Maurice Durozier que percebe o meu estado de compenetração e me cochicha no ouvido "sabe essa peruca que está na minha cabeça? Ela é como se ela fosse uma máscara". E então tudo fez sentido.

Mesmo sem ser um espetáculo mascarado, todo o trabalho do ator está diretamente relacionado com este tipo de teatro. As máscaras colocam em evidência o trabalho corporal do ator. Em um caminho oposto ao do teatro psicológico, o ator mascarado - justamente por ter o rosto completamente tampado - é obrigado a construir a personagem, suas características e seus estados, através do seu corpo. Muitas vezes a construção parte da definição de um eixo corporal sugerido pelos traços da máscara, de um ritmo interno ou de um estado físico sugerido por ela.

A máscara, com sua autoridade sagrada e profana, obriga o ator a não pensar, a estar no presente, a reagir ao outro o tempo todo. No exato momento em que o ator coloca a máscara, ele já é a máscara. Talvez seja por isso que as entradas e saídas sejam tão importantes nesse tipo de trabalho. Em um salto, o personagem está lá diante de todos. Não existe brechas para dúvidas, incertezas ou questionamentos que povoam a cabeça do ator amedrontado.

Como não havia percebido anteriormente essa influência tão concreta no Théâtre du Soleil? Os atores ao se olharem no espelho, olham para a própria máscara construída pela maquiagem. O figurino justo demais que obriga o ator a manter uma postura mais ereta é como a máscara que incomoda no rosto. A maquiagem, a peruca, os figurinos, tudo faz parte do mascarar-se.

Comecei a observar com outros olhos o que acontecia naquele espaço. Os atores entravam e saíam dos camarins (que têm acesso direto ao palco) com um eixo, um ritmo e um estado físico. Minutos antes do início do espetáculo, as bruxas vão encontrando o seu registro vocal, a sua forma de caminhar, de olhar e de interagir com os outros pobres mortais. Sim, aquelas brincadeiras dentro dos camarins eram bruxas tomando o corpo de atrizes.

Para além das máscaras que são utilizadas no espetáculo - como na cena em que as três bruxas se transformam para se encontrarem com Macbeth ou os cavalos do estábulo onde Macbeth revela a sua mulher que obteve sucesso no assassinato do rei Duncan -, o trabalho com máscaras está presente na construção não-realista de todos os personagens. Em alguns, como é o caso do porteiro e do mensageiro com "cara de quiche", são quase tão evidentes que só faltava a máscara de couro ou de madeira na cara. Outros, como a Lady Macbeth e Banquo, deixam traços mais sutis desse tipo de trabalho resultando em personagens menos marcados esteticamente.

O Théâtre du Soleil já trabalha há tantos anos com o teatro físico e com as diversas máscaras teatrais - do Topeng balinês ao nariz de palhaço - que já é possível ver os princípios desse trabalho em suas entranhas.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

50 anos de imaginação

À ocasião do lançamento do livro Le Théâtre du Soleil - Les Cinquante premières années por Béatrice Picon-Vallin, Ariane Mnouchkine cedeu uma entrevista no dia 18 de novembro, terça-feira, para a rádio France Culture sobre os 50 anos de Théâtre du Soleil. O livro de Picon-Vallin é o primeiro a ter uma abordagem histórica da trajetória artística da trupe. Para quem se interessar, coloco aqui disponível o link para a entrevista que está dividida em duas partes (http://www.franceculture.fr/oeuvre-le-theatre-du-soleil-%E2%80%93-les-cinquante-premieres-annees-de-beatrice-picon-vallin). 

Ariane Mnouchkine fala sobre fazer teatro, sobre arte, sobre cultura, sobre política. Em um determinado momento da entrevista, Ariane fala sobre a importância da imaginação. Para tanto, a encenadora cita uma fala de Étienne-Émile Baulieu, um professor da área científica, que diz que para se realizar uma pesquisa científica é necessário imaginação e liberdade. Ariane se permite ir mais longe dizendo que não apenas o mesmo serve para a pesquisa artística como é preciso ainda o tempo.

Ariane Mnouchkine vai mais longe. Em tradução livre, ela diz "não existe compaixão sem imaginação. E numa época onde justamente sectos de qualquer ordem - políticos ou  religiosos, etc - cultivam o ódio ao outro, onde se corta o lugar da fraternidade humana que deveria existir entre todos os seres humanos do planeta, a cultura, frágil como ela é, passa o seu tempo refazendo esse caminho, relembrando que o outro é semelhante mas nem tanto; é igual, mas diferente ao mesmo. Ele tem um mundo que relembra o meu. E eu tenho o meu, que está ligado ao dele. É isso a cultura. A cultura é a imaginação do sofrimento do outro. É a imaginação da beleza do outro."

Essa é a matéria essencial que move o ser humano. A imaginação da encenadora que alimenta o ator que por sua vez alimenta o público. O público vai ao teatro para realimentar a sua própria imaginação. E para isso é necessário liberdade e tempo. Liberdade para poder imaginar e tempo para deixar florir. Ariane fala sobre o ritual no cotidiano do Soleil. É preciso que o ator - que é uma pessoa comum - deixe a vida cotidiana para trás e se permita mergulhar no universo da imaginação. É essa a função do ritual.

E essa é a função de uma trupe. Por vezes, as dificuldades financeiras do Théâtre du Soleil (sim, eles também as tem!) nublam os pensamentos da mestra que precisa ser resgatada pelos atores e vice-versa. Em uma das reuniões com a trupe, Ariane relembra que mesmo em tempos difíceis é preciso entrar no palco e esquecer. Esvaziar-se para deixar entrar a imaginação.

E não seria esse o grande encanto do teatro? O que seria do teatro sem a imaginação e da imaginação sem o teatro? O que seriam dos atores, dos encenadores, do público? O que seria das pesquisas artísticas e científicas? O que seria das crianças? O que seria do mundo, afinal?

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O começo

Camarim dos atores

Lembro da primeira vez que entrei no teatro para ver um espetáculo do Théâtre du Soleil. Não era em Paris, mas trazia o mesmo ar da Cartoucherie que apenas tempos depois vim conhecer. Já na entrada, meus olhos foram recheados de beleza. Tudo era cuidadosamente trabalhado para já trazer o público para o universo ficcional do espetáculo em questão: as luzes, as pinturas nas paredes, as mesas e as cadeiras. Fui recebida por um homem simpático que me perguntava qual era o lugar que eu gostaria de me assentar e se eu gostaria de jantar no bar mais à frente disposto. Foi apenas quando já estava assistindo o espetáculo que fui descobrir que aquele homem simpático, assim como todos os outros garçons, era um dos atores da companhia. Após o delicioso jantar, caminhei em direção à sala de espetáculo de onde se via através de um pano de seda os atores acabando de se maquiar. Como espectadora de teatro, nunca havia visto algo igual. Sentia que fazer teatro era realmente algo sagrado para aquela trupe e que o público era um convidado extremamente especial.

É engraçado perceber que anos depois eu viria a descobrir como tudo funciona do outro lado do pano. Apesar de não ter assistido aquele espetáculo do Théâtre du Soleil em sua sede, o lugar onde a trupe se instala não é muito diferente do que eu havia presenciado. Ao viajar, a trupe tenta de alguma maneira levar a própria Cartoucherie com ela, uma vez que tudo faz parte da experiência teatral e não apenas o palco.

Quando os atores chegam na Cartoucherie, a primeira tarefa é trocar as roupas da rua por roupas de trabalho (inclusive os sapatos). Em seguida, vão realizar a mise en place, arrumar os camarins, limpar o palco, aspirar o salão, lavar os banheiros. É preciso que tudo isso seja feito em um mistura engraçada de agilidade e perfeccionismo. Então, eles têm um tempo para se preparar.

Em pesquisa realizada anteriormente (que pode ser conferida na postagem http://projetotheatredusoleil.blogspot.fr/2014/01/bem-vindos.html), falo sobre a diferença entre treinamento e preparação para o Théâtre du Soleil. De forma resumida, o treinamento estaria associada a uma preparação específica para determinado processo criativo; já a preparação seria apenas um aquecimento para permitir que o corpo-voz do ator esteja pronto para entrar em cena. Muito bem, durante esse mês que estive aqui, poucas vezes vi uma preparação coletiva e não presenciei nenhum momento de treinamento. Talvez o treinamento esteja presente durante o processo de criação, uma vez que realmente não há tempo hábil para realizá-lo dentro do cotidiano de temporada do Soleil. Já a preparação, muitas vezes ela ocorre de forma individual, devido ao pequeno tempo que os atores tem para se dedicar a ela.

Isso não significa, no entanto, que a preparação não seja importante para o Soleil. Em uma das primeiras reuniões que eu presenciei, Ariane Mnouchkine ressaltou a importância dos atores retomarem os aquecimentos coletivos e que era necessário não menosprezar esse momento de preparação do ator. Sobre os aquecimentos coletivos, cada vez eles são diferentes dependendo de qual ator se propõe a coordenar. No entanto, algumas características recorrentes podem ser percebidas, como a imitação e o coro.

Assim como nos espetáculos, esses dois elementos são muito recorrentes nas oficinas ministradas pelos atores e pela própria Ariane Mnouchkine. Durante a preparação coletiva, um ator assume a liderança, quase sempre acompanhado de música, e realiza uma série de exercícios - de alongamento ou de aquecimento - que devem ser seguidos pelos outros. Em uma dessas preparações que assistia, uma atriz mais antiga da companhia chamou a atenção daquele que liderava o grupo - coincidentemente mais novo na trupe - da importância de finalizar uma ação antes de começar a seguinte. Será que se trata apenas de exercícios de alongamento seguidos por uma música?

Após a preparação, o lanche. Uma pausa para reviver tudo que deve ser vivido no palco. Tirar a roupa de trabalho e colocar a roupa de gala do ator.

Uma reunião antes da entrada do público. Todos em roda se seguram pelas mãos e Ariane Mnouchkine olha um por um nos olhos - atores, músicos, técnicos, figurinistas - antes de ritualisticamente colocar as mãos no chão e dizer "Le public entre!".

Então, posso ver tudo aquilo que passei pela primeira vez anos atrás com um público que chega. Os atores estão lá, junto com a equipe da cozinha, servindo o jantar da noite. Outros atores estão nos camarins terminando a maquiagem, fazendo o último alongamento. Nos camarins, um silêncio ritualístico que diz que o espetáculo já começou.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Macbeth - do texto à cena




O atual espetáculo do Théâtre du Soleil é a montagem de Macbeth, uma das obras primas de William Shakespeare. Encenado quase na íntegra, o espetáculo tem a duração de 3 horas e 30 minutos com um intervalo de meia hora.

Essa semana, tive a oportunidade de ler a tradução para o francês utilizada pela trupe que foi realizada por Ariane Mnouchkine. No texto publicado, podemos conferir os trechos que foram excluídos do espetáculo marcados em cinza.

Lembro de ter lido em entrevistas anteriormente concedidas por Ariane Mnouchkine em que a diretora afirma que é necessário de tempos em tempos retornar aos grandes mestres do teatro para poder reaprender a fazer teatro. Talvez seja por esse motivo que o Théâtre du Soleil tenha proposto uma montagem tão colada ao texto sem grandes quebras à obra de origem.

No entanto, ler o texto de Shakespeare me confirmou de que o teatro só acontece verdadeiramente em cena. A montagem do Soleil possibilita uma compreensão mais completa da obra do bardo. Percebemos a existência de ações invisíveis no texto e que nos são reveladas pelo trabalho dos atores. Os atores revelam os estados dos personagens. Os cenários tornam reais aquilo que nossa imaginação tenta tornar concreto ao ler Macbeth.

A cena onde Macbeth e Banquo encontram as três bruxas, por exemplo, transmitem ao público o terror e o deslumbramento de encontrar tais criaturas sobrenaturais. As luzes de trovoadas revelam pouco a pouco as três grandes máscaras de bruxas que expelem fumaça pela boca ao revelar as terríveis profecias aos dois soldados maravilhados e aterrorizados. Teriam sido elas as culpadas por tornar Macbeth um tirano?

Para recriar Shakespeare é preciso sonhar. Senão, como tornar real o fantasma de Banquo? A floresta que caminha? A loucura de Macbeth e de Lady Macbeth? Como acreditar que um homem que possui um castelo, honrarias, uma mulher que lhe ama e o amor do rei possa se tornar um cão do inferno? 

O Théâtre du Soleil também se permitiu acrescentar cenas que não existem na obra original. A cena onde Ross retorna à Fife para buscar os corpos dos filhos e esposa de MacDuff foi criada durante as improvisações. Era necessário resgatar os corpos daqueles que foram injustamente massacrados.

Mas afinal, por que Macbeth?

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mise en place!



Um dos momentos mais significativos do cotidiano dos atores do Théâtre du Soleil é a mise en place. Normalmente, os atores chegam na Cartoucherie, reúnem-se com Ariane Mnouchkine para discutir questões relevantes do dia e depois colocam suas roupas de trabalho para iniciarem a mise en place.

Mettre en place  pode ser traduzido como "colocar algo no seu devido lugar". E se trata exatamente disso. Os atores são responsáveis pela organização e manutenção do cenário do espetáculo, objetos de cena, figurinos, perucas, máscaras e maquiagem. Após uma noite de apresentação, tudo deve ser recolocado no lugar, reorganizado para o espetáculo da noite.

Durante o período de uma hora (tempo que varia de acordo com o dia), os atores limpam o palco, organizam os camarins, reformam algum objeto que foi danificado e reposicionam os cenários. Cada um é responsável por cuidar de determinado cenário: alguns ficam responsáveis pelos objetos da cena do banquete onde Macbeth se enlouquece com as aparições do fantasma de Banquo; outros são responsáveis por encher e esquentar a água do banho de Lady Macbeth onde ela tenta desesperadamente tirar as manchas de sangue das mãos; outros ainda verificam e fazem a manutenção das máquinas de fumaça que sempre anunciam a presença do sobrenatural.

Em Macbeth, a mise en place é especialmente trabalhosa pela quantidade de cenários e objetos de cena. Um dos elementos do espetáculo que chama bastante atenção do público é a troca de cenários de uma cena para a outra. Essas trocas - pausas épicas em meio a tanta tragédia - são realizadas por mais de 40 atores com uma agilidade e precisão impressionantes. Como uma grande dança bem orquestrada onde todos devem estar constantemente atentos.

Durante o intervalo entre um ato e outro, os atores realizam uma nova troca de cenários, enquanto outros se preparam nos camarins. Antes da entrada do público, Ariane Mnouchkine se certifica de que técnicos e atores estão preparados, se a mise en place já foi finalizada.

Ao final do espetáculo, os atores reposicionam os cenários para facilitar a mise en place do dia seguinte e começar tudo de novo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Uma espectadora assídua

"A última palavra que você disse é muito importante : é a « escuta ». Eu acredito que eu sei fazer isso bem. Eu não direi mesmo que eu sei, mas eu amo, eu amo escutar e amo observar os atores." (MNOUCHKINE apud FÉRAL, 1995, p. 43, tradução nossa)"

Todas as noites, o público é recebido na porta do Théâtre du Soleil por Ariane Mnouchkine que recolhe os bilhetes do espetáculo da noite com um sorriso de boas-vindas. Durante o espetáculo, podemos vê-la sentada em seu lugar especial em meio ao público, tomando notas. No dia seguinte, Ariane se reúne com toda a equipe para repassar suas impressões da noite anterior. Um ator que deu uma fala errada, uma trilha que perdeu a entrada, uma luz que não está totalmente ajustada. Nenhum detalhe passa despercebido.

O mesmo acontece no salão. Antes da entrada do público, Ariane Mnouchkine observa se tudo está limpo, bem organizado, se a equipe do bar está preparada. Durante o espetáculo, o silêncio no salão é essencial. Qualquer coisa que deve ser dita é sussurrada e os talheres são recolocados no lugar com extremo cuidado.

Ariane é uma presença viva e pulsante no cotidiano do Théâtre du Soleil. Seu trabalho minucioso de observação diária da cena faz com que o espetáculo nunca esteja totalmente acabado. Percebo aos poucos as diversas camadas presentes no trabalho artístico que são detalhes sutis, mas que demonstram qualidade e alto grau de complexidade da obra produzida.

O rigor que Ariane Mnouchkine tem com o teatro é tão forte que transborda dos palcos. Servir o jantar do público antes, durante e após o espetáculo  não é considerada uma tarefa leviana. Ela também faz parte da experiência teatral como um todo. Nesse sentido, o cardápio é pensado de acordo com a obra apresentada no palco e o atendimento é realizado por todos: atores, estagiários e funcionários da cozinha.

A escuta afinada de Ariane Mnouchkine transmite para todos que estão a sua volta um respeito quase ritualístico pelo teatro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Soleil, uma trupe







A minha jornada com o Théâtre du Soleil tem início no dia 08 de outubro, quarta-feira de reestreia do novo espetáculo da trupe "Macbeth". O ritmo do grupo é intenso. Atores, técnicos, cozinheiros, figurinistas, musicista e diretora fazem os últimos preparativos para a chegada do público.

Observação. Essa foi a primeira tarefa dada por Madame Ariane Mnouchkine no dia da minha chegada que, vez ou outra, passava por mim com um sorriso singelo certificando se tudo corria bem. 

Escutar e observar. Lição valiosa de Ariane. No trabalho do Soleil, a observação é uma qualidade essencial para o teatro. Como nas tradições orientais, o mais jovem aprende com o mais velho observando-o. Da mesmo maneira, os recém chegados no Soleil aprendem com os mais antigos da casa observando-os no seu fazer cotidiano. Em entrevistas, Ariane Mnouchkine frequentemente diz que o ator precisa ser côncavo e convexo, ou seja, que é preciso receber do outro para depois reagir.

E o que eu recebi nesses quatro dias de observação? Posso dizer que comecei a entender o que significa ser uma trupe. Antes de chegar no Soleil, questionava-me por que o Théâtre du Soleil insiste em se auto-denominar como uma trupe e não como uma companhia ou grupo de teatro. Não seriam estes sinônimos?

Particularmente, a palavra trupe sempre me lembrou as trupes itinerantes da Idade Média. Compostas por famílias, avós, pais, mães que passavam aos filhos o ofício do ator, as trupes percorriam várias cidades realizando apresentações teatrais. 

De certa forma, o Théâtre du Soleil é formada por uma verdadeira família mambembe composta por cerca de 85 integrantes vindos de diversas partes do mundo e que encontraram o seu lar no teatro de Ariane Mnouchkine. Muitos são imigrantes que vivem longe de suas famílias de origem ou que se refugiaram da guerra. Também encontramos crianças, filhos de atores da trupe, que já começam a aprender no palco o ofício.

Mas, ser uma trupe de teatro é muito mais radical e profundo que isso. Se traduz na forma de fazer teatro. Um trabalho árduo, contínuo e coletivo. É necessário que todos trabalhem duro para que o teatro, essa arte tão efêmera e delicada, possa estar viva todos os dias. Para tanto, é necessário fazer a limpeza do espaço, organização dos objetos de cena, arrumação dos camarins, limpeza dos banheiros, preparação da comida, recepção do público... Tudo com extremo rigor, mesmo nos pequenos detalhes, atenção e generosidade com o outro e devoção ao teatro.

Evoé!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Bem vindos!

Este blogue foi criado com o intuito de compartilhar a investigação sobre os princípios de trabalho do Théâtre du Soleil, mais especificamente, dos atores do Soleil. Desde 2011, tenho pesquisado sobre a trupe francesa, a sua trajetória artística e os seus modos de trabalhar. Dessa investigação, resultou a monografia "A formação de jovens atuantes: apropriando-se dos princípios do Théâtre du Soleil" no ano de 2013 que me conferiu o título de licenciada em Teatro pela UFMG. Após esse trabalho teórico, tenho a oportunidade de em 2014 seguir com uma observação empírica do trabalho cotidiano da trupe, podendo comparar com aquilo que eu havia pesquisado teoricamente dentro da academia.

Para entender melhor do que se trata, por onde caminha a minha investigação, coloco abaixo um link que dá acesso ao trabalho na íntegra. Em linhas gerais, aprofundei-me sobre o conceito de princípio e  quais princípios estariam presentes no Théâtre du Soleil. Em um segundo momento, propus a realizar uma ponte entre o trabalho do grupo e o ensino de teatro averiguando como esses princípios poderiam servir em um contexto pedagógico com jovens adolescentes.

Para quem quer saber mais, clique aqui e boa leitura!