terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Revoadas


Hoje vi pela primeira vez as fotos do velório de Guy-Claude François que morreu em fevereiro deste ano. Apesar de não ter tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, eu e milhares de outras pessoas pudemos conhecer o seu trabalho como cenógrafo do Soleil por quase 50 anos. Pelas fotos, a morte de Guy-Claude François parece ter sido especialmente sentida por toda a trupe. E fiquei pensando sobre o Théâtre du Soleil ser um lugar de passagem.

Explico-me.

Desde a minha chegada na trupe, conheci várias pessoas em trânsito. Muitos voluntários que se colocam à serviço do teatro durante um, dois, ou vários dias. Muitos empregados que possuem contrato temporário até o final da turnê de Macbeth e que depois disso não sabem muito bem qual será a sua próxima aventura; ex-membros do Soleil que aparecem para assistir o espetáculo ou para rever os velhos amigos. O Théâtre du Soleil é uma grande casa que durante 50 anos viu chegar e partir muitas pessoas. Podemos falar de gerações.

Algumas vezes, durante as refeições coletivas, pude presenciar conversas onde um perguntava ao outro "você entrou em qual espetáculo?" seguida de uma resposta como "eu sou da época do Tartufo" ou ainda um terceiro que diz que é da "entrada de 2009" (ano do último grande estágio do Soleil). Todas essas referências nos dão ideia das diferentes gerações que coexistem na trupe e dos diferentes marcos existentes em sua história. Pessoas de mais de sessenta anos que lá estão há cinquenta anos; e pessoas de vinte anos que estão apenas há dois.

O Théâtre du Soleil tem o poder de se renovar sem perder aquilo que os que chegaram antes - e até mesmo partiram - construíram. A tradição teatral amadurecida pelo Soleil durante décadas é repassada para os que chegam e que se colocam humildemente como aprendizes. É uma forma de fazer teatro e é uma forma de aprender a fazer teatro.

Nesses quase três meses de imersão na trupe, pude ver que a casa funciona também como uma grande escola da vida, lugar de passagem onde as pessoas por ali se encontram, ficam algum tempo para depois alçar outros vôos... e até mesmo voltar. É dessa maneira que o Soleil semeia o teatro. Várias pessoas que por aqui passaram formaram novos grupos de teatro em outras partes do mundo (inclusive no Brasil!) que guardam alguma coisa dessa passagem por aqui. 

Nesse mês de dezembro, uma companhia grega está apresentando o espetáculo Mataroa na sala de ensaios do Théâtre du Soleil. Acolhidos por essa grande trupe, o grupo de gregos é dirigido por Hélène Cinque que foi atriz do Soleil por muitos anos e que já possui um trabalho sólido como diretora há alguns anos. Durante os ensaios, a trupe grega participou de várias refeições coletivas na Cartoucherie e ainda contou com a orientação de Ariane Mnouchkine.

E não podemos esquecer da Aftaab - companhia afegã fundada em 2005 em um estágio dirigido pelo Soleil em Kabul. Atualmente sediada em Paris, a Aftaab é acolhida por sua grande mãe. Durante anos, a companhia Aftaab ficou fazendo viagens de ida e volta entre Kabul e Paris. Como uma boa mãe, o Soleil os ajudou a fazer um curso de profissionalização no interior da França e os abrigou nas diversas vindas à Paris. Infelizmente, devido ao cenário de violência no Afeganistão, a companhia sentiu que o melhor para eles seria ficar na Europa. Hoje, vários deles vivem nos traillers do Soleil. Entre um espetáculo e outro, a Aftaab serve de equipe de apoio para a trupe francesa ajudando na contra regragem de Macbeth, na manutenção técnica, na coordenação do trabalho da cozinha e do bar. Essas pessoas, que tem uma história de vida tão dura, são as mais gentis que já conheci.

Eu, como tantos outros que por aqui passaram, também vou levar embora comigo um pouco de Théâtre du Soleil.

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