terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Do encantamento ao ofício

Depois de algumas semanas trabalhando no Théâtre du Soleil, o trabalho diário vai se tornando aos poucos uma rotina. Aquele olhar maravilhado da chegada vai dando lugar para um olhar acostumado com os rituais cotidianos da trupe. Chegar, trocar de roupa, fazer a mise en place, aquecer, comer... atividades que se repetem todos os dias.

Comecei a reparar como que na rotina do trabalho teatral, o tempo é um importante fator. Como o espetáculo tem um horário pra começar que é sempre o mesmo, todas as outras atividades acabam tendo tempos muitos precisos. A cena que MacDuff encontra com Malcom é o recreio dos atores. Nesse momento, eles comem, vão ao banheiro, descansam por dois minutos na cadeira... momentos raros durante a apresentação do Soleil. Na equipe da cozinha e do bar, o mesmo acontece: durante o primeiro ato, tem-se apenas 20 minutos para jantar, ir ao banheiro, bater papo antes do entreato.

E de repente os pequenos detalhes ganham mais relevo do que as grandes tarefas. É um dia que a máquina de lavar quebra e que toda a equipe do bar tem que fazer uma verdadeira força-tarefa para lavar tudo a tempo do intervalo; é uma atriz que vai consultar o médico e que precisa que outra pessoa faça a sua mise; é uma reunião descontraída no final do dia com um copo de cerveja ou de vinho. Uma pessoa que chega para fazer um trabalho voluntário ou um grupo escolar que vai fazer uma visita no Soleil naquele dia.

Na entrevista dada à radio Culture (da qual falei anteriormente na postagem 50 anos de imaginação), Ariane Mnouchkine diz que são os pequenos rituais que ajudam a relembrar aos atores que estão fazendo teatro. Afinal, são pessoas como qualquer outra. Os rituais cotidianos do Soleil - como bater três vezes na porta antes do público entrar, ou olhar nos olhos dos parceiros de cena antes do espetáculo começar - são como lembretes de que agora é preciso que o tempo se dilate, é preciso esquecer que fazemos isso todos os dias e é preciso viver de novo a tragédia pessoal de cada personagem.

Talvez isso explique a existência de tantas superstições dentro do mundo teatral e dentro do Théâtre du Soleil. Lá, não podemos usar a cor verde, não podemos falar a palavra "corda", não podemos assoviar, não podemos desejar boa sorte aos parceiros (no lugar, dizem coragem ou merda)... e ainda temos as superstições do próprio Soleil como a interdição de pintar a parede de budas. A parede que foi assim pintada durante um dos primeiros espetáculos do Soleil diz trazer boa sorte à trupe e nunca mais foi repintada. Hoje, ela está tampada por um tecido vermelho que condiz com a concepção estética da Cartoucherie para Macbeth. Mas, nas coxias, ainda podemos ver o grande buda como um sinal de boa sorte aos atores.




Alguns atores, repetem todas as noites as ações realizadas no dia da estreia. Portanto, se o ator se sentou naquela cadeira entre uma cena e outra na estreia, é isso que ele faz todas as noites. É claro que isso é particular de alguns atores da trupe e não são uma máxima do Théâtre du Soleil. Mas, são esses pequenos rituais como um olhar que se cruza antes de entrar em cena ou um aperto de mão forte é que ajudam os atores a relembrar que estão prestes a entrar em outra vida. Seus corpos e suas mentes devem estar totalmente no presente, esvaziar-se para dar lugar ao personagem que é intenso e efêmero.

Não se deixar habituar pelo olhar automático que vai tomando conta do nosso corpo e do nosso ser. Fazer teatro todos os dias como se fosse a primeira (ou a última) vez. Oferecer o teatro - ao mesmo tempo tão sagrado e tão profano - ao público que chega com o olhar fresco e maravilhado.

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