segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Sobre máscaras e mascaramentos




Uma das minhas pequenas aventuras dentro do Soleil é observar o espetáculo de dentro dos camarins. Cada ator tem um pequeno espaço com mesa e cadeira onde estão todos os acessórios de cabelo, maquiagem, perucas e uma pequena arara com seus vários figurinos e objetos de cena (foi postada uma foto dos camarins no texto O começo).

A dinâmica antes e durante o espetáculo é bem diferente. Antes do espetáculo - momento em que o público pode secretamente espiar os bastidores -, os atores estão acabando de se maquiar, de colocar o figurino e de se aquecer. Apesar de estarem concentrados, existe um leve clima de descontração. Enquanto alguns estão mais introspectivos, outros conversam sobre algum ajuste que precisa ser feito, batem papo ou até brincam uns com os outros. Afinal, eles apresentam o mesmo espetáculo todas as noites, já tendo ultrapassado a marca de 100 apresentações... Mas, quando as luzes dos camarins piscam anunciando o terceiro sinal, o ambiente se transforma completamente.

Durante as quatro horas de representação, quase não se escuta vozes. As conversas são evitadas ao máximo se resumindo a curtos diálogos cochichados. Os atores entram nos camarins, fazem uma troca de roupa (às vezes tão rápida que é necessário contar com a ajuda das três figurinistas do Soleil), refazem a maquiagem, o cabelo e voltam de novo para o palco. Por vezes, um ou outro ator tem alguns segundos a mais para tomar uma água ou para repassar rapidamente suas ações. No entanto, esses momentos são raros e normalmente vemos apenas os atores saindo e entrando rapidamente.

Observando aquele espaço quase sempre vazio, um elemento me chamou especialmente atenção: a quantidade de espelhos. Além dos quase 40 espelhos dispostos nas mesas, existem outros vários espelhos de corpo inteiro espalhados. Olhar-se no espelho é uma ação natural para os atores que precisam se maquiar e verificar o figurino. Mas, por que tantos espelhos?

Em meio ao meu diálogo interno, sou interrompida pelo ator Maurice Durozier que percebe o meu estado de compenetração e me cochicha no ouvido "sabe essa peruca que está na minha cabeça? Ela é como se ela fosse uma máscara". E então tudo fez sentido.

Mesmo sem ser um espetáculo mascarado, todo o trabalho do ator está diretamente relacionado com este tipo de teatro. As máscaras colocam em evidência o trabalho corporal do ator. Em um caminho oposto ao do teatro psicológico, o ator mascarado - justamente por ter o rosto completamente tampado - é obrigado a construir a personagem, suas características e seus estados, através do seu corpo. Muitas vezes a construção parte da definição de um eixo corporal sugerido pelos traços da máscara, de um ritmo interno ou de um estado físico sugerido por ela.

A máscara, com sua autoridade sagrada e profana, obriga o ator a não pensar, a estar no presente, a reagir ao outro o tempo todo. No exato momento em que o ator coloca a máscara, ele já é a máscara. Talvez seja por isso que as entradas e saídas sejam tão importantes nesse tipo de trabalho. Em um salto, o personagem está lá diante de todos. Não existe brechas para dúvidas, incertezas ou questionamentos que povoam a cabeça do ator amedrontado.

Como não havia percebido anteriormente essa influência tão concreta no Théâtre du Soleil? Os atores ao se olharem no espelho, olham para a própria máscara construída pela maquiagem. O figurino justo demais que obriga o ator a manter uma postura mais ereta é como a máscara que incomoda no rosto. A maquiagem, a peruca, os figurinos, tudo faz parte do mascarar-se.

Comecei a observar com outros olhos o que acontecia naquele espaço. Os atores entravam e saíam dos camarins (que têm acesso direto ao palco) com um eixo, um ritmo e um estado físico. Minutos antes do início do espetáculo, as bruxas vão encontrando o seu registro vocal, a sua forma de caminhar, de olhar e de interagir com os outros pobres mortais. Sim, aquelas brincadeiras dentro dos camarins eram bruxas tomando o corpo de atrizes.

Para além das máscaras que são utilizadas no espetáculo - como na cena em que as três bruxas se transformam para se encontrarem com Macbeth ou os cavalos do estábulo onde Macbeth revela a sua mulher que obteve sucesso no assassinato do rei Duncan -, o trabalho com máscaras está presente na construção não-realista de todos os personagens. Em alguns, como é o caso do porteiro e do mensageiro com "cara de quiche", são quase tão evidentes que só faltava a máscara de couro ou de madeira na cara. Outros, como a Lady Macbeth e Banquo, deixam traços mais sutis desse tipo de trabalho resultando em personagens menos marcados esteticamente.

O Théâtre du Soleil já trabalha há tantos anos com o teatro físico e com as diversas máscaras teatrais - do Topeng balinês ao nariz de palhaço - que já é possível ver os princípios desse trabalho em suas entranhas.

Um comentário:

  1. Belo texto. Eu que não sou ator consegui acompanhar o desenrolar do texto sem grandes problemas, texto muito bem escrito. Parabéns minha filha. Não é só corujice pai não.

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