quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O começo

Camarim dos atores

Lembro da primeira vez que entrei no teatro para ver um espetáculo do Théâtre du Soleil. Não era em Paris, mas trazia o mesmo ar da Cartoucherie que apenas tempos depois vim conhecer. Já na entrada, meus olhos foram recheados de beleza. Tudo era cuidadosamente trabalhado para já trazer o público para o universo ficcional do espetáculo em questão: as luzes, as pinturas nas paredes, as mesas e as cadeiras. Fui recebida por um homem simpático que me perguntava qual era o lugar que eu gostaria de me assentar e se eu gostaria de jantar no bar mais à frente disposto. Foi apenas quando já estava assistindo o espetáculo que fui descobrir que aquele homem simpático, assim como todos os outros garçons, era um dos atores da companhia. Após o delicioso jantar, caminhei em direção à sala de espetáculo de onde se via através de um pano de seda os atores acabando de se maquiar. Como espectadora de teatro, nunca havia visto algo igual. Sentia que fazer teatro era realmente algo sagrado para aquela trupe e que o público era um convidado extremamente especial.

É engraçado perceber que anos depois eu viria a descobrir como tudo funciona do outro lado do pano. Apesar de não ter assistido aquele espetáculo do Théâtre du Soleil em sua sede, o lugar onde a trupe se instala não é muito diferente do que eu havia presenciado. Ao viajar, a trupe tenta de alguma maneira levar a própria Cartoucherie com ela, uma vez que tudo faz parte da experiência teatral e não apenas o palco.

Quando os atores chegam na Cartoucherie, a primeira tarefa é trocar as roupas da rua por roupas de trabalho (inclusive os sapatos). Em seguida, vão realizar a mise en place, arrumar os camarins, limpar o palco, aspirar o salão, lavar os banheiros. É preciso que tudo isso seja feito em um mistura engraçada de agilidade e perfeccionismo. Então, eles têm um tempo para se preparar.

Em pesquisa realizada anteriormente (que pode ser conferida na postagem http://projetotheatredusoleil.blogspot.fr/2014/01/bem-vindos.html), falo sobre a diferença entre treinamento e preparação para o Théâtre du Soleil. De forma resumida, o treinamento estaria associada a uma preparação específica para determinado processo criativo; já a preparação seria apenas um aquecimento para permitir que o corpo-voz do ator esteja pronto para entrar em cena. Muito bem, durante esse mês que estive aqui, poucas vezes vi uma preparação coletiva e não presenciei nenhum momento de treinamento. Talvez o treinamento esteja presente durante o processo de criação, uma vez que realmente não há tempo hábil para realizá-lo dentro do cotidiano de temporada do Soleil. Já a preparação, muitas vezes ela ocorre de forma individual, devido ao pequeno tempo que os atores tem para se dedicar a ela.

Isso não significa, no entanto, que a preparação não seja importante para o Soleil. Em uma das primeiras reuniões que eu presenciei, Ariane Mnouchkine ressaltou a importância dos atores retomarem os aquecimentos coletivos e que era necessário não menosprezar esse momento de preparação do ator. Sobre os aquecimentos coletivos, cada vez eles são diferentes dependendo de qual ator se propõe a coordenar. No entanto, algumas características recorrentes podem ser percebidas, como a imitação e o coro.

Assim como nos espetáculos, esses dois elementos são muito recorrentes nas oficinas ministradas pelos atores e pela própria Ariane Mnouchkine. Durante a preparação coletiva, um ator assume a liderança, quase sempre acompanhado de música, e realiza uma série de exercícios - de alongamento ou de aquecimento - que devem ser seguidos pelos outros. Em uma dessas preparações que assistia, uma atriz mais antiga da companhia chamou a atenção daquele que liderava o grupo - coincidentemente mais novo na trupe - da importância de finalizar uma ação antes de começar a seguinte. Será que se trata apenas de exercícios de alongamento seguidos por uma música?

Após a preparação, o lanche. Uma pausa para reviver tudo que deve ser vivido no palco. Tirar a roupa de trabalho e colocar a roupa de gala do ator.

Uma reunião antes da entrada do público. Todos em roda se seguram pelas mãos e Ariane Mnouchkine olha um por um nos olhos - atores, músicos, técnicos, figurinistas - antes de ritualisticamente colocar as mãos no chão e dizer "Le public entre!".

Então, posso ver tudo aquilo que passei pela primeira vez anos atrás com um público que chega. Os atores estão lá, junto com a equipe da cozinha, servindo o jantar da noite. Outros atores estão nos camarins terminando a maquiagem, fazendo o último alongamento. Nos camarins, um silêncio ritualístico que diz que o espetáculo já começou.

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