quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Em busca do Oriente

Um dos apectos do trabalho do Théâtre du Soleil que mais chama a atenção de pesquisadores e estudiosos é a forma como a trupe francesa se apropria de tradições teatrais do Oriente. Mas, eles não são os únicos. Encenadores como Peter Brook e Eugenio Barba também são famosos por esse tipo de apropriação. É claro que o processo e o resultado artístico de cada um vão ser completamente diversos.

No caso do Théâtre du Soleil, esse interesse pelo Oriente já é muito antigo e se revela de diferentes formas no trabalho da trupe. O espetáculo L'Indiade ou l'Inde de leurs rêves (1987) utiliza a Índia como universo ficcional. Le Tartuffe transportou Molière para o Oriente Médio e Tambours sur la digue colocou em cena o teatro de marionetes e os tambores coreanos. Mas, a influência do Oriente na vida da trupe é mais profunda que isso. Os atores menos experientes aprendem com os mais experientes através da observação e da imitação, assim como os mestres de Terrakoothu transmitem há milênios a sua arte. A expressividade dos olhos e as linhas do corpo lembram uma dançarina de Bharatanatyam ou um ator de Katakhali - disciplinas inclusive estudadas anteriormente por alguns atores do Soleil. As cores dos cenários e dos figurinos - com seus vermelhos e amarelos - são do mesmo tom encontrados nas ruas e templos indianos. É curioso perceber como essa influência - sobretudo estética - fica evidente conhecendo de perto a Índia.

Sabendo que a estada na Índia é curta, a trupe tenta absorver o máximo que pode no menor tempo possível. Tomam todo o período da manhã para praticarem o que vieram buscar na Índia (alguns começam às seis e meia da manhã). À tarde, tentam descobrir como que esse conhecimento verterá na criação: seria como tema? Como forma? Vários experimentos são feitos. Improvisações de naturezas diversas. Acima de tudo exigência. Tudo pode ser tentado, mas não qualquer coisa.

Aos poucos, entre dias bons e dias ruins, a trupe vai descobrindo o que funciona. Ou melhor, o que não funciona. Um grupo de atores, por exemplo, persistiram em uma mesma improvisação por três dias. Fizeram ao menos três versões da mesma cena - cada uma mais ousada que a outra. Os mais desatentos diriam que foi tempo perdido. Mas, encontrar o caminho também implica em descobrir o não-caminho.

E assim, pouco a pouco a Índia vai se adentrando na carne da trupe.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Visões

O momento da criação de um espetáculo é o momento mais especial e caótico que pode ser vivido por uma trupe de teatro. É o momento da efervescência, mas também do vazio. Das descobertas e dos questionamentos sem fim... Quem já vivenciou algum processo de criação sabe exatamente do que eu estou falando. E quando essa criação se dá em grupo, ela é muito mais intensa.

Nesse sentido, o Théâtre du Soleil não é uma exceção. Ele também tem as suas crises, as suas alegrias. Dias bons e dias ruins.

Sinto-me privilegiada em poder testemunhar esse momento tão peculiar da vida do Théâtre du Soleil e de poder escrever sobre ele aqui para vocês. No entanto, tal qual uma hóspede que respeita as regras da casa onde visita, eu não poderei revelar para vocês tudo sobre a criação. Mas, prometo que tentarei da melhor forma possível compartilhar aquilo que estiver em meu poder.

...

Durante o período de Ano Novo, vi aos poucos a pequena cidade de Pondicherry ser invadida por membros do Théâtre du Soleil. A cada nova esquina, um técnico, um membro da produção, um e outro ator... Era engraçado perceber que dentro da Índia crescia uma França. Até o cozinheiro estava por aqui! E por que? Ninguém sabia de fato qual seria a sua função na nova produção. Até o primeiro dia de ensaio, apenas Ariane Mnouchkine e Jean-Jacques Lemêtre sabiam exatamente qual seria o tema da criação. Um grande mistério para eles e para mim que não sabia se poderia realmente ou não assistir aos ensaios.

E no dia 04 de janeiro, o Théâtre du Soleil iniciou oficialmente os seus ensaios. Cerca de 100 pessoas se espremendo e se adaptando a essa nova casa na Índia que é a metade do espaço que normalmente se dispõe na Cartoucherie. Todos estão presentes desde o primeiro dia: músicos, figurinistas, atores, técnicos, produtores, iluminadores, cenógrafos, dramaturga... Desde o primeiro dia, todos trabalham juntos na criação.

O trabalho começa às oito e meia da manhã e só vai terminar às seis ou sete horas da noite. Durante o período da manhã, a trupe se dedica a pesquisar e a aprender a fonte de pesquisa que vieram buscar na Índia. O período da tarde é reservado para a criação propriamente dita.

É engraçado observar como que a maneira de trabalhar do Théâtre du Soleil não se difere muito do que foi feito na École Nomade. Primeiramente, os atores se reúnem para concocter, ou seja, para combinar improvisações. Às vezes, isso acontece em roda em que os atores compartilham visões e formam grupos de trabalho.

Aqui vale um parênteses. O termo "visões" é muito utilizado no Théâtre du Soleil. Uma visão significa uma imagem concreta de uma situação ou de um personagem. Poderíamos talvez dizer que seria uma ideia, termo que faz tremer Ariane Mnouchkine. Por que? Porque ideia faz referência à alguma coisa intelectual e que não necessariamente implica em uma ação concreta. Já uma visão não necessariamente passa por uma elaboração intelectual. A palavra visão já imputa uma carga mais emocional ou intuitiva, algo que se passa mais pelo corpo do que pelo intelecto. A visão é algo de tão forte que já traz uma carga emocional e uma concretude, seja para um personagem, seja para uma situação.

A partir dessa visão, os atores de reúnem para concocter, ou seja, para desenvolver uma situação de jogo mais clara. Onde estamos? Quem são os personagens? Em que estados se encontram? Qual ação realizam? Por que realizam essas ações? Após terem entrado em acordo sobre esses elementos, vão preparar questões de ordem prática. Passam por Marie-Hélène, a figurinista, que ajuda a construir a pele dos personagens. Passam por Jean-Jaques Lemêtre, o músico, e compartilham a visão para que ele já elabore algum material sonoro para a improvisação. Passam pelos técnicos se precisam de construir algum elemento de cena.

É nessa parte da tarde que a trupe - atores, músicos, figurinistas, iluminadores, etc - vão tentar transbordar para a criação aquilo que têm pesquisado no período da manhã. Às vezes, Hélène Cixous, a dramaturga, traz alguma proposta de texto que será experimentada pelos atores. E os atores vão se utilizar de tudo que for preciso para concretizar as suas visões.

Então, todos se assentam na arquibancada para dar início ao trabalho de criação. Ariane Mnouchkine dá orientações para os atores "esse é o momento que vocês podem tudo. Não tenham medo de serem ridículos ou de errarem. Esse é o momento para sermos o mais criativo possível. Coragem!".

E o primeiro corajoso grupo sobe ao palco.

Na maior parte das vezes, a improvisação não chega ao fim. Ou sofre mudanças em seu curso. Alguma coisa que foi planejada não acontece em cena ou Ariane Mnouchkine direciona a improvisação para outro lugar. Muitas vezes, a improvisação não é um sucesso. Falta concretude. Falta ação. Falta estado. A visão não é forte suficiente. Mesmo quando os atores são muito experientes. Mesmo quando os atores preparam bem a visão. 

Como cães cegos, os atores farejam, tentam, experimentam, jogam-se no desconhecido. Ariane Mnouchkine com sua larga experiência e habilidade tenta guiá-los sem saber para onde estão caminhando. Afinal, seria a obra apresentada à ela através dos atores ou vice-versa? Durante as improvisações, mais perguntas do que respostas. Muitos questionamentos, reflexões, dúvidas.

Cada improvisação abre uma porta completamente diferente. Cada porta é um universo de possibilidades. E isso é assustador. Por onde seguir? Com a sabedoria de uma pessoa que faz teatro há 50 anos, Ariane Mnohckine acalma os atores: "não é hora de fazer escolhas. Esse momento vai chegar, mas estamos somente na primeira semana, não é mesmo?" A busca se dá no palco, em cena, no corpo.

Após as improvisações do dia, Ariane Mnouchkine troca algumas palavras com a equipe. "Alguém tem algo de encorajador para dizer?". E muitas vezes, algum ator compartilha alguma reflexão, alguma frase, algum acalento. Um dia de trabalho com seus bons e maus momentos. Os primeiros dias de trabalho. 

E assim cada um toma o seu rumo. Alguns conversam baixinho enquanto arrumam as suas coisas. Compartilham com os colegas alguma nova visão ou como retrabalhar determinada improvisação em um momento futuro. Do lado de fora, outros atores fumam um cigarro pensativos. Vemos em suas retinas as improvisações do dia, as questões, as dúvidas.

E pouco a pouco o teatro vai se esvaziando.

domingo, 3 de janeiro de 2016

O teatro de Mnouchkine e eu

Após 12 dias de trabalho, a École Nômade se encerra na Índia. O projeto que durou mais ou menos 6 meses em três continentes diferentes agora termina. Pelo menos, por agora. Amanhã, o Théâtre du Soleil começa uma nova criação. Mas, se vocês me permitirem, gostaria de frear um pouco o tempo e usar esse espaço para compartilhar e refletir o que foi a École Nomade.

A primeira coisa que posso dizer é que foi uma experiência muito intensa para todos ali presentes. Durante três semanas - trabalhamos do dia 14 ao dia 30 de dezembro folgando apenas no Natal e nos finais de semana -, nosso cotidiano se resumia em experimentar e observar o teatro que o Soleil acredita. Acordávamos cedo para chegarmos pontualmente na oficina e dormíamos cedo para termos energia para o dia seguinte. A maioria dos participantes dormiu em um mesmo hotel gratuito oferecido pela produção local. Portanto, mesmo quando não estávamos na sala de ensaio, compartilhávamos as impressões do dia, as frustrações e as reflexões sobre o trabalho. Mesmo passando a maior parte do tempo sentados, apenas observando, sentíamos nossos corpos exaustos ao final do dia.

Então, o que eu posso dizer dessa experiência? Que ela foi extremamente enriquecedora e angustiante. Enriquecedora, porque temos o privilégio de trabalhar com teatro em tempo integral com uma das maiores mestras da contemporaneidade. Angustiante, porque o trabalho é extremamente exigente e difícil.

Tive a oportunidade de subir no palco três vezes. E elas consistiram mais em erros do que em acertos. O erro faz parte do aprendizado, mas é duro se levantar depois de uma queda. Ariane tem um olhar meticuloso que rapidamente identifica se o ator está preparado ou não. As cortinas se abrem e ela tem de ser capaz de ler imediatamente quem é este personagem, onde ele está, em que estado de espírito... tudo isso dentro de uma forma precisa e de uma música interior. Bastam 30 segundos para que Madame Mnouchkine se decida. Não há tempo de "se aquecer em cena", como ela diz. Temos de criar teatro imediatamente naquele chão de concreto, muitas vezes sem a ajuda de nenhum outro elemento que o seu próprio corpo. Esse é o mínimo exigido.

É um teatro físico que exige uma resposta muito rápida do ator. O trabalho se passa entre o corpo e o coração, sem psicologismos. Estar com todos os poros extremamente abertos para receber do outro e reagir. Relembro aqui um ensinamento que um dos meus queridos professores de teatro me deixou: o máximo de esforço para o mínimo de eficiência.

Posso dizer que comecei a perceber verdadeiramente o trabalho apenas na última vez que subi no palco. Uma situação extremamente concreta foi criada pelos atores do Soleil: tratava-se de uma audição ficcional para uma companhia de teatro regida por uma diretora extremamente aterrorizante (sim, uma paródia clara ao Théâtre du Soleil e à Ariane Mnouchkine). Nós, participantes, éramos jovens candidatos amedrontados. Tudo que tínhamos de fazer era mergulhar na situação criada e reagir. É simples, mas não é fácil.

Então, tentei me alimentar e me deixar ser afetada cada vez mais pelo terror criado em cena. Encontrar esse medo verdadeiro no meu íntimo e expressá-lo em meu corpo. À medida que isso ia crescendo no meu íntimo, mais o meu corpo se disponibilizava para o jogo e mais eu acreditava no que acontecia em cena. Crescia em mim um personagem aterrorizado, mas guiado por uma atriz que cuidava de manter a calma para traduzir esse personagem em um desenho claro e definido. Não havia tempo para pensar, refletir. Tudo era extremamente rápido e tudo que podíamos fazer era reagir. Confiar na ficção criada pelo seu parceiro, deixar a imaginação nos mergulhar na brincadeira, engajar o seu corpo inteiro e de forma verdadeira.

Acabada a improvisação, Ariane Mnouchkine destacou que eu e alguns outros atores começavam a compreender finalmente por onde passa o trabalho. Para mim, foi preciso muitos dias de observação e muitos "nãos" em cena.

Cada participante teve um caminho diferente. Alguns apreenderam rapidamente o trabalho que esse tipo de teatro exige. Outros, como eu, demoraram mais ou terminaram a oficina sem ainda terem compreendido. Os primeiros formaram um seleto grupo A, de atores locomotivas, ou seja, de atores que de uma certa maneira iriam guiar o gigantesco grupo B.

Talvez por sermos muitos dentro de um tempo reduzido, Ariane Mnouchkine se preocupou mais em desenvolver os membros do grupo A. Ela acreditava que poderia ser mais eficiente como aprendizado a observação da evolução deste grupo. Não sei afirmar o quanto essa divisão realmente favoreceu um aprendizado. Mas, essa é a forma que Ariane Mnouchkine trabalha em todas as oficinas que ministra.
E assim passamos por coros e corifeus, improvisações de diversos formatos e, por último, máscaras da comédia dell'arte, máscaras balinesas e máscaras indianas de Chauu. O trabalho com as máscaras foi muito rápido e apenas pouquíssimos atores puderam passar por ele. Os participantes que iriam trabalhar aquele dia eram preparados com figurinos completos de acordo com a máscara escolhida. Normalmente, apenas um ator era trabalhado por vez durante mais ou menos uma hora.

Grande parte dos atores ali presentes nunca tiveram contato com nenhuma daquelas máscaras. Alguns nunca tinham ouvido em falar em comédia dell'arte. Ariane Mnouchkine falou muito pouco sobre cada máscara. Preocupou-se apenas em falar sobre as características básicas de cada uma sem impor formas físicas determinadas. Gradualmente, fomos descobrindo cada máscara e era curioso perceber como que atores indianos que nunca tinham visto um trabalho com comédia dell'arte, por exemplo, chegavam nas mesmas posturas clássicas, nos mesmos lazzis descobertos há muitos anos por atores italianos.

...

Agora, olho pra trás e tento compartilhar com vocês o que a École Nomade significou para esta atriz brasileira. Sinto-me privilegiada de ter participado dessa última École num dos berços do teatro mundial. Acredito que este também está sendo um momento único para o Théâtre du Soleil. É a primeira vez que a trupe vem ao país, lugar de tradições teatrais milenares. Lugar de passagem de Ariane Mnouchkine em 1964 em sua famosa viagem pela Ásia em busca pelo teatro. Lugar de constante inspiração das criações do Théâtre du Soleil.

Esperemos.


Quem quiser acompanhar mais de perto a École Nômade pode acessar o site http://institutfrancais.in/ e clicar no vídeo à direita da tela (na seção vídeo gallery). Neste vídeo vocês poderão conferir os momentos mais importantes da École Nomade . Esses vídeos estarão disponíveis por apenas 24 horas.