terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mise en place!



Um dos momentos mais significativos do cotidiano dos atores do Théâtre du Soleil é a mise en place. Normalmente, os atores chegam na Cartoucherie, reúnem-se com Ariane Mnouchkine para discutir questões relevantes do dia e depois colocam suas roupas de trabalho para iniciarem a mise en place.

Mettre en place  pode ser traduzido como "colocar algo no seu devido lugar". E se trata exatamente disso. Os atores são responsáveis pela organização e manutenção do cenário do espetáculo, objetos de cena, figurinos, perucas, máscaras e maquiagem. Após uma noite de apresentação, tudo deve ser recolocado no lugar, reorganizado para o espetáculo da noite.

Durante o período de uma hora (tempo que varia de acordo com o dia), os atores limpam o palco, organizam os camarins, reformam algum objeto que foi danificado e reposicionam os cenários. Cada um é responsável por cuidar de determinado cenário: alguns ficam responsáveis pelos objetos da cena do banquete onde Macbeth se enlouquece com as aparições do fantasma de Banquo; outros são responsáveis por encher e esquentar a água do banho de Lady Macbeth onde ela tenta desesperadamente tirar as manchas de sangue das mãos; outros ainda verificam e fazem a manutenção das máquinas de fumaça que sempre anunciam a presença do sobrenatural.

Em Macbeth, a mise en place é especialmente trabalhosa pela quantidade de cenários e objetos de cena. Um dos elementos do espetáculo que chama bastante atenção do público é a troca de cenários de uma cena para a outra. Essas trocas - pausas épicas em meio a tanta tragédia - são realizadas por mais de 40 atores com uma agilidade e precisão impressionantes. Como uma grande dança bem orquestrada onde todos devem estar constantemente atentos.

Durante o intervalo entre um ato e outro, os atores realizam uma nova troca de cenários, enquanto outros se preparam nos camarins. Antes da entrada do público, Ariane Mnouchkine se certifica de que técnicos e atores estão preparados, se a mise en place já foi finalizada.

Ao final do espetáculo, os atores reposicionam os cenários para facilitar a mise en place do dia seguinte e começar tudo de novo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Uma espectadora assídua

"A última palavra que você disse é muito importante : é a « escuta ». Eu acredito que eu sei fazer isso bem. Eu não direi mesmo que eu sei, mas eu amo, eu amo escutar e amo observar os atores." (MNOUCHKINE apud FÉRAL, 1995, p. 43, tradução nossa)"

Todas as noites, o público é recebido na porta do Théâtre du Soleil por Ariane Mnouchkine que recolhe os bilhetes do espetáculo da noite com um sorriso de boas-vindas. Durante o espetáculo, podemos vê-la sentada em seu lugar especial em meio ao público, tomando notas. No dia seguinte, Ariane se reúne com toda a equipe para repassar suas impressões da noite anterior. Um ator que deu uma fala errada, uma trilha que perdeu a entrada, uma luz que não está totalmente ajustada. Nenhum detalhe passa despercebido.

O mesmo acontece no salão. Antes da entrada do público, Ariane Mnouchkine observa se tudo está limpo, bem organizado, se a equipe do bar está preparada. Durante o espetáculo, o silêncio no salão é essencial. Qualquer coisa que deve ser dita é sussurrada e os talheres são recolocados no lugar com extremo cuidado.

Ariane é uma presença viva e pulsante no cotidiano do Théâtre du Soleil. Seu trabalho minucioso de observação diária da cena faz com que o espetáculo nunca esteja totalmente acabado. Percebo aos poucos as diversas camadas presentes no trabalho artístico que são detalhes sutis, mas que demonstram qualidade e alto grau de complexidade da obra produzida.

O rigor que Ariane Mnouchkine tem com o teatro é tão forte que transborda dos palcos. Servir o jantar do público antes, durante e após o espetáculo  não é considerada uma tarefa leviana. Ela também faz parte da experiência teatral como um todo. Nesse sentido, o cardápio é pensado de acordo com a obra apresentada no palco e o atendimento é realizado por todos: atores, estagiários e funcionários da cozinha.

A escuta afinada de Ariane Mnouchkine transmite para todos que estão a sua volta um respeito quase ritualístico pelo teatro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Soleil, uma trupe







A minha jornada com o Théâtre du Soleil tem início no dia 08 de outubro, quarta-feira de reestreia do novo espetáculo da trupe "Macbeth". O ritmo do grupo é intenso. Atores, técnicos, cozinheiros, figurinistas, musicista e diretora fazem os últimos preparativos para a chegada do público.

Observação. Essa foi a primeira tarefa dada por Madame Ariane Mnouchkine no dia da minha chegada que, vez ou outra, passava por mim com um sorriso singelo certificando se tudo corria bem. 

Escutar e observar. Lição valiosa de Ariane. No trabalho do Soleil, a observação é uma qualidade essencial para o teatro. Como nas tradições orientais, o mais jovem aprende com o mais velho observando-o. Da mesmo maneira, os recém chegados no Soleil aprendem com os mais antigos da casa observando-os no seu fazer cotidiano. Em entrevistas, Ariane Mnouchkine frequentemente diz que o ator precisa ser côncavo e convexo, ou seja, que é preciso receber do outro para depois reagir.

E o que eu recebi nesses quatro dias de observação? Posso dizer que comecei a entender o que significa ser uma trupe. Antes de chegar no Soleil, questionava-me por que o Théâtre du Soleil insiste em se auto-denominar como uma trupe e não como uma companhia ou grupo de teatro. Não seriam estes sinônimos?

Particularmente, a palavra trupe sempre me lembrou as trupes itinerantes da Idade Média. Compostas por famílias, avós, pais, mães que passavam aos filhos o ofício do ator, as trupes percorriam várias cidades realizando apresentações teatrais. 

De certa forma, o Théâtre du Soleil é formada por uma verdadeira família mambembe composta por cerca de 85 integrantes vindos de diversas partes do mundo e que encontraram o seu lar no teatro de Ariane Mnouchkine. Muitos são imigrantes que vivem longe de suas famílias de origem ou que se refugiaram da guerra. Também encontramos crianças, filhos de atores da trupe, que já começam a aprender no palco o ofício.

Mas, ser uma trupe de teatro é muito mais radical e profundo que isso. Se traduz na forma de fazer teatro. Um trabalho árduo, contínuo e coletivo. É necessário que todos trabalhem duro para que o teatro, essa arte tão efêmera e delicada, possa estar viva todos os dias. Para tanto, é necessário fazer a limpeza do espaço, organização dos objetos de cena, arrumação dos camarins, limpeza dos banheiros, preparação da comida, recepção do público... Tudo com extremo rigor, mesmo nos pequenos detalhes, atenção e generosidade com o outro e devoção ao teatro.

Evoé!