Ontem à noite tive uma conversa
muito interessante com Adolfo.
Adolfo é motorista da navette, um
ônibus fretado que todos os dias leva e traz o público do metrô para a
Cartoucherie. Adolfo trabalha para o Soleil há mais de 15 anos e já foi
técnico, cenógrafo e ator da trupe. Hoje, por escolha própria, dirige a
navette. Há anos desejava voltar a trabalhar com mecânica e veículos. A
vantagem de trabalhar no Soleil, segundo ele, é a liberdade de poder fazer o
que quiser.
Ele não é o único a ter uma
história assim. Da cozinha para os palcos; dos palcos para a técnica; da
técnica para a administração; da administração para a navette... A troca muitas
vezes passa por uma vontade pessoal, mas nem sempre. Ela também depende das
necessidades da própria trupe. Uma liberdade maravilhosa e, ao mesmo tempo,
complexa.
A atual operadora de luz, por
exemplo, começou a exercitar essa função num momento em que era necessário para
o Soleil. Deixou de atuar nos palcos e começou a estudar iluminação. Uma
oportunidade perfeita para um desejo antigo.
Como estagiária no Soleil, tenho
a oportunidade de experimentar várias funções. Normalmente, procuro estar mais
perto do trabalho dos atores – pois eles são o foco da minha investigação -, mas
trabalho frequentemente na cozinha, no bar, no escritório, na livraria ou em
qualquer outro setor que precisar de uma mãozinha. Dessa forma, consigo ter uma
visão geral do que é essa grande e complexa trupe. É verdade que cada função
tem a sua importância. Fazer o borderô da semana é tão essencial quanto lavar
os banheiros. Mas, isso não significa que ambas sejam valorizadas da mesma
forma, nem que seja fácil transitar de uma para a outra.
A equipe do bar e da cozinha é
uma das maiores e mais complexas de todas. Nela, encontramos cozinheiros,
atores, cenógrafos, encenadores, estudantes de teatro, estudantes de cinema e
voluntários que vem e vão. Vários trabalham em outros lugares – como suas
próprias companhias de teatro. Muitos dos atores da companhia afegã Aftaab, por
exemplo, trabalham cotidianamente na cozinha da trupe mãe. Porta de entrada,
alguns que lá estão nutrem o desejo de poder um dia estar nos palcos da trupe.
Não posso deixar de mencionar que os próprios atores do Soleil trabalham no bar
fazendo a recepção do público, momento de aproximação entre o fora e o dentro
de cena.
Nos palcos, a relação relembra
muito as tradições orientais de teatro onde o aprendiz deve galgar cada degrau.
O ator recém-chegado passa pela função de kôken – um tipo de contrarregra -,
depois por papéis secundários - como os mensageiros - para enfim representar
personagens com mais destaque. Claro que isso não funciona de uma forma
engessada, dependendo muito de cada processo de criação. Os atores “locomotivas”
– assim chamados dentro do Soleil – vão guiar os mais novos, conduzi-los
durante o período de criação, introduzi-los a forma de trabalho da trupe e
transmitir conhecimento.
Na parte de administração e
contabilidade, temos uma equipe que trabalha incansavelmente no escritório.
Bilheteria, arquivos, e-mails, borderô, contratos, salários, balanço
financeiro, cronograma, correio, telefonemas... algumas pessoas dessa equipe
trabalham no Théâtre du Soleil há vários anos e tem a dura tarefa de não deixar
com que o balanço financeiro esqueça do lado humano. É preciso lembrar que se
trata de se fazer teatro de forma que seja acessível para o público sem abrir
mão da enorme trupe e da riqueza artística dos espetáculos com seus longos
processos de criação.
Na liderança dessa caravana,
temos a furiosa e amorosa Ariane Mnouchkine. Sua genialidade artística e sua
incrível habilidade de gestão são grandes responsáveis pelos 50 anos de
(r)existência do Théâtre du Soleil. Aos 75 anos de idade, Ariane demonstra uma
energia incrível para equilibrar todas as questões administrativas como as
artísticas.
Ser uma cooperativa significa, em
tese, abolir a relação patrão-empregado e considerar todas as funções com
equidade não havendo disparidade salarial. Mas, a realidade não é bem assim.
Existem as lideranças, mais ou menos espontâneas; as pequenas competitividades; as
diferenças salariais. Afinal, trata-se de um grupo humano com direito às todas
as delícias e dessabores.
Mesmo com todas as imperfeições, é certo que todos ali são movidos, acima de tudo, por uma grande paixão pelo teatro a que se dedica o Théâtre du Soleil. Um teatro comprometido com a arte com todo o seu esplendor onde o público é o convidado de honra e a obra o seu presente.
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