domingo, 27 de dezembro de 2015

Imersão




Acordo às 7 horas da manhã e coloco a minha roupa de trabalho. Ela deve ser preta, cinza, branca, azul ou vermelho. Cores simples e não muito chamativas. Nada de desenhos, escritos, decotes. A roupa de trabalho deve ser bem acabada, nada desleixado demais ou mostrando muita pele. Nos pés, um sapato neutro e confortável que só deve ser usado dentro do local de trabalho. Os cabelos bem presos de forma a deixar visível o rosto. Nada de maquiagem, adereços ou qualquer tipo de máscara que esconda o rosto (isso vale inclusive para as barbas mal feitas). Durante o café da manhã, uma das minhas colegas afixa o meu nome na minha camisa e verifica se ela está bem colocada, reta e legível.
 
Chego na oficina às 9:15 da manhã, horário em que um dos atores do Soleil passa um aquecimento para os participantes. O local da oficina lembra a Cartoucherie: o teto em formato de V, a arquibancada, as cortinas amarelas, as paredes com pinturas indianas.... Um local simples e agradável. Olho para os meus colegas de oficina. Misturados num mesmo espaço temos atores muito jovens, atores renomados na Índia, atores que sabem pouco ou quase nada sobre o Théâtre du Soleil, atores com uma longa trajetória e atores que acabaram de começar a fazer teatro. Provenientes de todas as partes da Índia, escutamos tâmil, hindu, inglês e muitas outras línguas. Mesmo com todas essas diferenças, tenho a impressão que eles são todos como aquele espaço; simples e agradáveis.
 
A oficina começa pontualmente às 10 horas. Os participantes assentam-se nas arquibancadas e Ariane Mnouchkine dá início ao trabalho. Alguns dos atores do Théâtre du Soleil também estão lá.
 
"Alguma pergunta, declaração, comentário antes de começarmos?"
 
E então começamos. São 7 horas de trabalho - com uma hora de almoço - absorvidos no universo teatral do Théâtre du Soleil. Começamos por improvisações de coro e corifeu a partir de músicas narrativas de Mozart, Vivaldi, Bach... Depois de vários dias tentando entender essa maneira de trabalhar o teatro, passamos a improvisar a partir do tema dos jovens amantes. Somos separados em grupos de homens e de mulheres, mas agora damos mais um passo na questão do coro: somos um mesmo grupo, mas não temos de obrigatoriamente seguir um corifeu. Até que finalmente começamos a nos aventurar em realizar improvisações com fala e sem música (mas sempre com uma música interior!).

Os atores do Soleil sempre estão prontos para ajudar um ator em dificuldade, seja entrando em cena, abrindo as cortinas, arrumando o figurino ou aprimorando alguma visão.
 
A maior parte do tempo ficamos assentados na arquibancada assistindo "com os olhos de uma mãe que assiste o seu filho dar os primeiros passos". É exaustivo ficar tanto tempo observando esperando por um pequeno momento para subir no palco.

Um corajoso grupo sobre ao palco e um dos atores levanta a mão indicando que ele possui uma visão, ou seja, que ele está pronto para entrar em cena. Ele vai para atrás da cortina, se prepara, diz em alto e bom tom que está pronto e então Ariane responde que nós, o público, também estamos. Então, ele entra e nós torcemos silenciosamente.

A maior parte das vezes, Ariane interrompe, porque falta alguma ação concreta ou estado. Ela sempre diz que o ator não tem tempo de "se aquecer" em cena. Ele deve imediatamente colocar a sua imaginação para funcionar e nos transportar para outro lugar, tempo, história. E então, ele volta para atrás da cortina e tenta de novo. E então temos a segunda, terceira, quarta tentativa. E às vezes ele simplesmente não estava pronto ainda e vai se assentar.
 
Madame Mnouchkine é extremamente exigente, mas quando algum de nós consegue trazer alguma verdade, vemos Ariane empenhada em trabalhar e fazer o teatro nascer diante de nossos olhos. E é lindo ver esse nascimento.

Mas, não pense que é fácil. Desde o primeiro momento, temos que estar imbuídos de um estado verdadeiro e de uma ação concreta dentro de um desenho preciso dentro de um ritmo. Nós, o público, queremos entender, precisamos entender mesmo que não haja figurino, cenário, música ou fala. Da arquibancada, esperamos ansiosamente por teatro, e quando isso acontece, esquecemos da dor nas costas, do calor. Somos lembrados do porquê de sermos encantados com essa arte. De repente, o chão de concreto se torna uma selva, um palácio, um lugar de liberdade e de verdade.

De verdade. Aqui. Agora. Rapidamente.

Essas são os quatro elementos do trabalho do ator de acordo com Ariane Mnouchkine.

E quando vemos já são cinco horas da tarde. Algumas perguntas, colocações e o trabalho se encerra. Agora é esperar pelo dia seguinte.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A École Nômade: o Soleil na Índia

 

Quase um ano depois, recomeçamos nossa aventura pelo universo teatral do Théâtre du Soleil. Durante algum tempo, o Théâtre du Soleil esteve um pouco adormecido. Cada ator teve tempo para rever a família, descansar e investir em projetos pessoais. Alguns se permitiram conhecer novas culturas e tradições teatrais; outros se ocuparam em transmitir um pouco do seu ofício; outros ainda tomaram esse tempo para concretizar outros trabalhos. Enquanto isso, na Cartoucherie, vários artistas foram convidados para rechear aquele espaço, inclusive a própria Aftaab que realizou uma curta temporada de seu último espetáculo La Ronde de nuit.
 
Esse respiro foi essencial para dar impulso a um novo e importante passo da trupe: a École Nômade.

Em julho desse ano, o Théâtre du Soleil deu início a um projeto que se chama École Nômade (em português, escola nômade), uma oficina ministrada por Ariane Mnouchkine com o apoio de alguns atores do Soleil em diversos países do mundo. A primeira se deu no Chile, com duração de um mês e com cerca de 200 participantes e ouvintes. Diferente dos famosos estágios que acontecem na Cartoucherie, a École Nômade não pretende selecionar novos atores para a trupe.

 
Essas oficinas são completamente gratuitas, mas exigem dedicação total dos participantes que trabalham de segunda à sexta (às vezes, sábados ou domingos) das 10 horas às 17 horas.

 
A École Nômade já alçou grandes vôos. Depois do Chile, veio Inglaterra, Suécia e agora Índia, sempre reunindo atores do mundo todo. Com exceção do Chile (que foi a mais longa), todas as outras oficinas duraram cerca de 15 dias.

 
E é aqui que eu entro na história com vocês, caros leitores. Escrevo do oceano Índico para contar pessoalmente sobre essa nova experiência do Soleil. Já se passou uma semana de trabalho, tão rápida e tão intensa que parece que essas duas semanas vão se acabar em um piscar de olhos. Somos cerca de 100 participantes e alguns ouvintes. A grande maioria são jovens atores de todas as partes da Índia que vieram aprender com o Théâtre du Soleil na pequena cidade de Pondicherry, no sul da Índia. Mas também encontrei por aqui franceses, brasileiros, italianos, canadenses, americanos... estrangeiros que moram por aqui ou que viajaram para cá somente para viver esta experiência.

 
"Vocês se acham muito numerosos?" Ariane Mnouchkine diz no primeiro dia de trabalho. "Se você pensa dessa maneira, sinta-se livre para sair agora".

 
Somos muitos, é verdade. Mas, existe espaço para todos nós aprendermos. Precisamos ser corajosos, dedicados e, principalmente, aprender a trabalhar com o outro que às vezes nem fala a mesma língua. É um trabalho árduo, difícil, mas maravilhoso quando vemos nascer o teatro diante de nossos olhos.

Caro leitor, peço desculpas se por ventura não for capaz de traduzir tudo aquilo que é vivenciado por aqui em meus textos. Para tanto, peço que não se sinta acanhado em perguntar ou comentar. Prometo que tentarei ao longo desses dias traduzir em palavra aquilo que o ator deve saber transformar pelo coração e pelo corpo.

 
Despeço-me aqui, ansiosa para viver essa experiência e compartilhar com vocês.

 
Nandri! (Obrigada!)


Atualização!
Quem quiser acompanhar mais de perto a École Nômade pode acessar o site http://institutfrancais.in/ e clicar no vídeo à direita da tela (na seção vídeo gallery). Neste vídeo vocês poderão conferir os momentos mais importantes do terceiro, quarto e quinto encontro que aconteceram respectivamente nos dias 16, 17 e 18 de dezembro. Esses vídeos estarão disponíveis por apenas 24 horas. Ao final desse período, outros encontros da École Nômade em Pondicherry serão exibidos nesse mesmo canal.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Do lado de cá do Atlântico

Com o final de 2014, veio o tão esperado recesso para Soleil. A segunda temporada de Macbeth durou apenas três meses. Mas, nesse pequeno período de tempo, o Théâtre du Soleil funcionou a todo vapor, fazendo seis apresentações por semana. A dura tarefa de apresentar Shakespeare nos palcos em um espetáculo de quatro horas foi certamente recompensadora. Todas as noites, com a casa constantemente cheia, o público nos mostrava que ainda é possível se fazer teatro.

Agora, toda a equipe do Théâtre du Soleil terá o merecido descanso para retomar com fôlego a última temporada de Macbeth. E eu, também encerro aqui a primeira metade da minha residência artística no Soleil.

Foi com grande dificuldade que eu me despedi daquele lugar mágico. Os lugares que eu habitei e que sei que estarão diferentes quando eu voltar. As pessoas que vão seguir por outros caminhos. Este Macbeth e todas as personagens cercadas por sua ambição desenfreada já não existirão mais pra mim que em lembrança.

Nos meus últimos dias convivendo com o Soleil, pensei muito a respeito da efemeridade das coisas e da ação do tempo. Tudo aquilo que foi a minha vida durante três meses, de repente, já não é mais. Como diz a canção Na carreira de Chico Buarque, o trabalho do artista é "ir deixando a pele em cada palco e não olhar pra trás". O tempo. Falamos tanto sobre ritmo, musicalidade, timing... mas, o tempo é também aquele que deixa para trás apenas os rastros dessa arte.

E então, o que será do Théâtre du Soleil depois de Macbeth? Não sei. Ninguém sabe realmente. Outras criações incríveis, espero. O fim da temporada marcará o início de uma grande  pausa nas atividades do grupo, momento em que Ariane Mnouchkine normalmente precisa para encontrar um ponto de partida da próxima criação.

E nós? Nós também teremos o privilégio da pausa. Esta primeira parte da nossa aventura encontrou o seu fim. Inclusive, escrevo para vocês, queridos leitores, de terras brasileiras. Durante três meses, pude acompanhar o Théâtre du Soleil em temporada, seu cotidiano, sua rotina de trabalho. Agora, essa aventura ficará em suspensão durante um ano - período em que o Soleil finaliza o seu atual, quer ser por volta de março, e toma a mencionada pausa. No início de 2016, retornarei a Cartoucherie para acompanhar durante três meses o Soleil em uma nova caminhada: o processo de criação. E, claro, continuarei a compartilhar as minhas impressões e experiências com vocês.

Ao Soleil um "até breve!" recheado de "obrigado" por toda o acolhimento e generosidade.

Aos queridos leitores, agradeço imensamente por me acompanharem nessa saga por terras estrangeiras, à procura do teatro!