sexta-feira, 21 de novembro de 2014

50 anos de imaginação

À ocasião do lançamento do livro Le Théâtre du Soleil - Les Cinquante premières années por Béatrice Picon-Vallin, Ariane Mnouchkine cedeu uma entrevista no dia 18 de novembro, terça-feira, para a rádio France Culture sobre os 50 anos de Théâtre du Soleil. O livro de Picon-Vallin é o primeiro a ter uma abordagem histórica da trajetória artística da trupe. Para quem se interessar, coloco aqui disponível o link para a entrevista que está dividida em duas partes (http://www.franceculture.fr/oeuvre-le-theatre-du-soleil-%E2%80%93-les-cinquante-premieres-annees-de-beatrice-picon-vallin). 

Ariane Mnouchkine fala sobre fazer teatro, sobre arte, sobre cultura, sobre política. Em um determinado momento da entrevista, Ariane fala sobre a importância da imaginação. Para tanto, a encenadora cita uma fala de Étienne-Émile Baulieu, um professor da área científica, que diz que para se realizar uma pesquisa científica é necessário imaginação e liberdade. Ariane se permite ir mais longe dizendo que não apenas o mesmo serve para a pesquisa artística como é preciso ainda o tempo.

Ariane Mnouchkine vai mais longe. Em tradução livre, ela diz "não existe compaixão sem imaginação. E numa época onde justamente sectos de qualquer ordem - políticos ou  religiosos, etc - cultivam o ódio ao outro, onde se corta o lugar da fraternidade humana que deveria existir entre todos os seres humanos do planeta, a cultura, frágil como ela é, passa o seu tempo refazendo esse caminho, relembrando que o outro é semelhante mas nem tanto; é igual, mas diferente ao mesmo. Ele tem um mundo que relembra o meu. E eu tenho o meu, que está ligado ao dele. É isso a cultura. A cultura é a imaginação do sofrimento do outro. É a imaginação da beleza do outro."

Essa é a matéria essencial que move o ser humano. A imaginação da encenadora que alimenta o ator que por sua vez alimenta o público. O público vai ao teatro para realimentar a sua própria imaginação. E para isso é necessário liberdade e tempo. Liberdade para poder imaginar e tempo para deixar florir. Ariane fala sobre o ritual no cotidiano do Soleil. É preciso que o ator - que é uma pessoa comum - deixe a vida cotidiana para trás e se permita mergulhar no universo da imaginação. É essa a função do ritual.

E essa é a função de uma trupe. Por vezes, as dificuldades financeiras do Théâtre du Soleil (sim, eles também as tem!) nublam os pensamentos da mestra que precisa ser resgatada pelos atores e vice-versa. Em uma das reuniões com a trupe, Ariane relembra que mesmo em tempos difíceis é preciso entrar no palco e esquecer. Esvaziar-se para deixar entrar a imaginação.

E não seria esse o grande encanto do teatro? O que seria do teatro sem a imaginação e da imaginação sem o teatro? O que seriam dos atores, dos encenadores, do público? O que seria das pesquisas artísticas e científicas? O que seria das crianças? O que seria do mundo, afinal?

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O começo

Camarim dos atores

Lembro da primeira vez que entrei no teatro para ver um espetáculo do Théâtre du Soleil. Não era em Paris, mas trazia o mesmo ar da Cartoucherie que apenas tempos depois vim conhecer. Já na entrada, meus olhos foram recheados de beleza. Tudo era cuidadosamente trabalhado para já trazer o público para o universo ficcional do espetáculo em questão: as luzes, as pinturas nas paredes, as mesas e as cadeiras. Fui recebida por um homem simpático que me perguntava qual era o lugar que eu gostaria de me assentar e se eu gostaria de jantar no bar mais à frente disposto. Foi apenas quando já estava assistindo o espetáculo que fui descobrir que aquele homem simpático, assim como todos os outros garçons, era um dos atores da companhia. Após o delicioso jantar, caminhei em direção à sala de espetáculo de onde se via através de um pano de seda os atores acabando de se maquiar. Como espectadora de teatro, nunca havia visto algo igual. Sentia que fazer teatro era realmente algo sagrado para aquela trupe e que o público era um convidado extremamente especial.

É engraçado perceber que anos depois eu viria a descobrir como tudo funciona do outro lado do pano. Apesar de não ter assistido aquele espetáculo do Théâtre du Soleil em sua sede, o lugar onde a trupe se instala não é muito diferente do que eu havia presenciado. Ao viajar, a trupe tenta de alguma maneira levar a própria Cartoucherie com ela, uma vez que tudo faz parte da experiência teatral e não apenas o palco.

Quando os atores chegam na Cartoucherie, a primeira tarefa é trocar as roupas da rua por roupas de trabalho (inclusive os sapatos). Em seguida, vão realizar a mise en place, arrumar os camarins, limpar o palco, aspirar o salão, lavar os banheiros. É preciso que tudo isso seja feito em um mistura engraçada de agilidade e perfeccionismo. Então, eles têm um tempo para se preparar.

Em pesquisa realizada anteriormente (que pode ser conferida na postagem http://projetotheatredusoleil.blogspot.fr/2014/01/bem-vindos.html), falo sobre a diferença entre treinamento e preparação para o Théâtre du Soleil. De forma resumida, o treinamento estaria associada a uma preparação específica para determinado processo criativo; já a preparação seria apenas um aquecimento para permitir que o corpo-voz do ator esteja pronto para entrar em cena. Muito bem, durante esse mês que estive aqui, poucas vezes vi uma preparação coletiva e não presenciei nenhum momento de treinamento. Talvez o treinamento esteja presente durante o processo de criação, uma vez que realmente não há tempo hábil para realizá-lo dentro do cotidiano de temporada do Soleil. Já a preparação, muitas vezes ela ocorre de forma individual, devido ao pequeno tempo que os atores tem para se dedicar a ela.

Isso não significa, no entanto, que a preparação não seja importante para o Soleil. Em uma das primeiras reuniões que eu presenciei, Ariane Mnouchkine ressaltou a importância dos atores retomarem os aquecimentos coletivos e que era necessário não menosprezar esse momento de preparação do ator. Sobre os aquecimentos coletivos, cada vez eles são diferentes dependendo de qual ator se propõe a coordenar. No entanto, algumas características recorrentes podem ser percebidas, como a imitação e o coro.

Assim como nos espetáculos, esses dois elementos são muito recorrentes nas oficinas ministradas pelos atores e pela própria Ariane Mnouchkine. Durante a preparação coletiva, um ator assume a liderança, quase sempre acompanhado de música, e realiza uma série de exercícios - de alongamento ou de aquecimento - que devem ser seguidos pelos outros. Em uma dessas preparações que assistia, uma atriz mais antiga da companhia chamou a atenção daquele que liderava o grupo - coincidentemente mais novo na trupe - da importância de finalizar uma ação antes de começar a seguinte. Será que se trata apenas de exercícios de alongamento seguidos por uma música?

Após a preparação, o lanche. Uma pausa para reviver tudo que deve ser vivido no palco. Tirar a roupa de trabalho e colocar a roupa de gala do ator.

Uma reunião antes da entrada do público. Todos em roda se seguram pelas mãos e Ariane Mnouchkine olha um por um nos olhos - atores, músicos, técnicos, figurinistas - antes de ritualisticamente colocar as mãos no chão e dizer "Le public entre!".

Então, posso ver tudo aquilo que passei pela primeira vez anos atrás com um público que chega. Os atores estão lá, junto com a equipe da cozinha, servindo o jantar da noite. Outros atores estão nos camarins terminando a maquiagem, fazendo o último alongamento. Nos camarins, um silêncio ritualístico que diz que o espetáculo já começou.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Macbeth - do texto à cena




O atual espetáculo do Théâtre du Soleil é a montagem de Macbeth, uma das obras primas de William Shakespeare. Encenado quase na íntegra, o espetáculo tem a duração de 3 horas e 30 minutos com um intervalo de meia hora.

Essa semana, tive a oportunidade de ler a tradução para o francês utilizada pela trupe que foi realizada por Ariane Mnouchkine. No texto publicado, podemos conferir os trechos que foram excluídos do espetáculo marcados em cinza.

Lembro de ter lido em entrevistas anteriormente concedidas por Ariane Mnouchkine em que a diretora afirma que é necessário de tempos em tempos retornar aos grandes mestres do teatro para poder reaprender a fazer teatro. Talvez seja por esse motivo que o Théâtre du Soleil tenha proposto uma montagem tão colada ao texto sem grandes quebras à obra de origem.

No entanto, ler o texto de Shakespeare me confirmou de que o teatro só acontece verdadeiramente em cena. A montagem do Soleil possibilita uma compreensão mais completa da obra do bardo. Percebemos a existência de ações invisíveis no texto e que nos são reveladas pelo trabalho dos atores. Os atores revelam os estados dos personagens. Os cenários tornam reais aquilo que nossa imaginação tenta tornar concreto ao ler Macbeth.

A cena onde Macbeth e Banquo encontram as três bruxas, por exemplo, transmitem ao público o terror e o deslumbramento de encontrar tais criaturas sobrenaturais. As luzes de trovoadas revelam pouco a pouco as três grandes máscaras de bruxas que expelem fumaça pela boca ao revelar as terríveis profecias aos dois soldados maravilhados e aterrorizados. Teriam sido elas as culpadas por tornar Macbeth um tirano?

Para recriar Shakespeare é preciso sonhar. Senão, como tornar real o fantasma de Banquo? A floresta que caminha? A loucura de Macbeth e de Lady Macbeth? Como acreditar que um homem que possui um castelo, honrarias, uma mulher que lhe ama e o amor do rei possa se tornar um cão do inferno? 

O Théâtre du Soleil também se permitiu acrescentar cenas que não existem na obra original. A cena onde Ross retorna à Fife para buscar os corpos dos filhos e esposa de MacDuff foi criada durante as improvisações. Era necessário resgatar os corpos daqueles que foram injustamente massacrados.

Mas afinal, por que Macbeth?